Pular para o conteúdo principal

Carlos, o bêbado

Finalmente reencontrei Carlos, o bêbado.

Carlos é e não é o que pensamos. Está na praia todos os dias, carrega sempre uma garrafa de cachaça a tiracolo.

É um pastorador de ventos. Ontem tangia um gato quando passei de bicicleta e ele olhou sem me ver, apenas vagamente impressionado por me reencontrar ali tanto tempo depois. Quis lhe perguntar, chegar mais perto, mas era tarde e a fome batia.

Carlos: a barba mais longa, o olhar quebradiço de quem não dorme já há muitos dias, um aspecto em tudo destoante do Carlos que imaginei.

O tempo opera pequenas vilezas. Convém na cair nas suas armadilhas.

Carlos foi meu confidente, agora já nem me escuta. Antes que o alcoolismo o lançasse nesse torvelinho de desvario no qual não distingue o dia da noite, eu lhe puxava a manga da camisa e perguntava: ela virá?

Carlos assentia. Ela sempre vem. E então tornava a bebericar aguardente como o passarinho extraviado ou as aves de papel que ela deixara por ali não fazia tanto tempo.

Era noutra vida. Noutra época. Tínhamos ambos pouca idade, e os dias se consumiam entre amor e outras ninharias. Não conhecíamos então a aspereza das horas nem esse fel do desespero.

Mas agora Carlos é outro. Eu também sou, digo pra ele sem dizer.

A vontade que tenho de chamar Carlos a um canto e pedir que olhe bem pra mim até que me reconheça.

Insistir nesse olhar, deixá-lo em suspenso por minutos. Confrontá-lo com o que era. E dizer que, embora sempre tenha errado seus prognósticos, eu lhe devotava fé cega.

Escrevo histórias, diria a Carlos. Você é parte delas.

Eu não sou mais nada, ele responderia com a voz engrolada, cuspindo palavras na areia quente da praia.

Mas Carlos ainda é. Nas minhas histórias ele salta do banco ao ver um casal que passa e se surpreende que casais ainda passem por ali. E então nos olhos ainda é um homem feliz.

Um viajante do tempo, foi isto que Carlos me pareceu desde o começo, quando paramos à sombra e descansamos e como um personagem de fábula ele se pôs de pé falando noutra língua coisas que só entenderia muito depois.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d