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Mostrando postagens de março 23, 2018

Não olhe pra trás

Abro o livro ao acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já soubesse de antemão. Então encontro essa história. Uma garota que perdeu a memória depois que seu namorado foi embora. Na verdade, ela tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade. Ou da turma de teatro. O fato é que a menina esquece tudo no lapso de um ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças.  Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.  Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia estado a seu

A resposta de L

Antes de que nos falássemos, porém, houve esse momento em que L meio bêbada quis fazer acreditar que estava muito triste por causa de algo que não queria dizer. Mas L não se entristece de fato, é uma mulher muito forte e segura que ri e macera toda a matéria com as mãos e os pés. Eu lhe disse isso, usei a imagem certo de acharia bonita. Afinal concordamos em que os pés e as mãos, as extremidades do corpo, desempenham papel fundamental na felicidade. Sofremos sempre e nos alegramos, e toda alegria e agonia começam pelos pés, começam pelas mãos. Então lembramos brevemente de um episódio e depois de outro nos quais confirmávamos a valência dessa verdade segundo a qual há nas pontas de cada um modo de decifrar o futuro, nas mãos carregamos mais certezas que dúvidas, nos pés conduzimos mais acasos que rotas. Não surpreende que leiam as palmas à procura de significados, que dedilhem as linhas e nessas linhas adivinhem sentidos que permanecem ocultos. Palmas e plantas, ela respo

L no passeio

Tornei a falar com L, agora noutro contexto, ambos já curados e exaustos de tudo que foi carne e sangue. Ela ainda toda ânsia de mudança, um corpo que vai em frente e procura. E se não acha não se detém no que não tem importância. Para e escreve que deseja tudo diferente. Uma vida? Um ano? Um livro? Ela não responde, apenas que precisa dessas coordenadas que não levem ao mesmo lugar, que está na rua enquanto digita e não sabe se conhece essas pessoas, se já as viu em sonho, se são elas mesmas inventadas, criações suas postas em existência por capricho. Se de algum modo ela se descolou e agora flutua sobre as coisas. Penso na ênfase da palavra, o diferente caído ao final como um pingente muito pesado que faz o pescoço curvar-se e nessa curva perder talvez o que possa ter de certeza. No diferente uma porção de fé e força, tanta energia gasta na procura. Afinal, diferente do quê? E para quem? Pergunto se ainda tem certezas, e parece que desconverso, que procuro desvios no