Abro o livro ao
acaso como se cortasse um baralho e de lá puxasse uma carta cujo naipe já
soubesse de antemão.
Então encontro essa história. Uma
garota que perdeu a memória depois que seu namorado foi embora. Na verdade, ela
tem amnésia após bater a cabeça contra o chão enquanto era
suspensa pelas colegas num ensaio qualquer da faculdade. Ou da turma de teatro.
O fato é que a menina esquece tudo no lapso de um
ano. Apaga rostos e sensações, catástrofes e gostos, marcas e datas. Esquece quem
é, do que gosta, quem são seus pais e por quem se apaixonara. Mesmo um evento
como o 11 de Setembro desaparece totalmente de suas lembranças. Num instante, ela sofria por causa do término da relação. No outro, está vazia de tudo.
Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia estado a seu lado durante todo esse tempo, vai embora mais uma vez.
Para ajudar a lembrar, passa a anotar bilhetinhos recordando a si mesma que não come carne ou que precisa alimentar o gato de vez em quando. Até que, vencido algum tempo, a memória se restabelece. O corpo recobra autonomia. E o namorado, que havia estado a seu lado durante todo esse tempo, vai embora mais uma vez.
O título da história é Dèja vu (de novo). Foi apresentada como monólogo num teatro em Pitsburgh (EUA) sob o tema “Não olhe pra trás”. É uma das 45 narrativas que integram o livro Tudo que é belo. Pode ser lida à página
146, como parte do bloco “Mantendo o controle”.
Por muito tempo, tomei decisões
com base na sorte, atribuindo ao acaso uma importância excessiva, enxergando
nos elementos da natureza mais simbologia do que eles talvez contivessem e
procurando auxílio de onde quase sempre não viria nada.
E mesmo depois de tudo eu ainda
queria bater contra o muro e deletar de uma vez por todas anos inteiros da
minha vida. Dias, senhas, aniversários, frases, gestos, cheiros, sabores e
imagens. Simplesmente deixar que sumissem, fossem embora e se perdessem nesse
limbo para onde vão as lembranças extraviadas de quem não quer ser assombrado o
tempo inteiro pelo passado. Semanas espiralando-se como fumaça de cigarro num fim
de tarde.
Mas aí, também casualmente,
comecei a leitura do romance A gorda
de um modo pouco usual: pelas epígrafes, que costumo saltar, mas nessas eu me detive. Nesse livro incrível, a escritora
portuguesa Isabela Figueiredo narra fatos relacionados à sua própria vida. São
dolorosos, mas também engraçados. E por isso acho que, apesar de tudo, ela não gostaria
de se desfazer deles assim tão facilmente, como a jovem de Dèja vu. Tenho certeza de que ela prefere
tê-los à mão sempre que precisar.
O que explica a escolha da autora pela epígrafe de
Javier Cercas: “O passado nunca termina de passar, sempre está aqui, operando
sobre o presente, formando parte dele, habitando-nos”.
Não sei se concordo. Há fatos passados e outros nem tanto. Um passado no particípio e outro mais
recente, interagindo e moldando o presente. A semiótica tensiva, um ramo tão esotérico da semiologia quanto o tarot, distingue os
dois conceitos. Um já distante e outro agora. Um que passou e outro que talvez venha a passar, não havendo qualquer garantia de que passe de todo.
Faz todo sentido não olhar pra
trás na tentativa de manter o controle. Rasurar a memória. Apagar. Polir o corpo de suas marcas. E depois avançar. Na narrativa bíblica, voltar-se ao que
já passou implica em castigo. Daí que, quando a personagem descumpre a ordem, converte-se em estátua de sal. Pelo menos é nisso que a
história quer que acreditemos. Que essas olhadelas para os lados são sinal de fraqueza e traição a um preceito mais nobre. Que o tempo é unívoco. Que é preciso ter segurança de que o fluxo da vida aponta para adiante e não para os lados ou para trás.
Numa reportagem publicada na
revista piauí deste mês, o escritor
Karl Ove Knausgard afirma: o passado está na gente e não lá fora. A frase, que
encerra uma longa descrição de uma mulher que poderia ser uma personagem de
Turguêniev, tenta demonstrar que a paisagem nunca passa. E, dentro dela, as
cenas são quase sempre as mesmas. Os dramas humanos têm essa qualidade da persistência.
Karl Ove é o autor da série Minha luta. São seis volumes e 3,5 mil
páginas sobre uma epopeia pessoal e excruciante na qual o escritor pretendeu recriar
a própria vida em pormenores sem importância. Seus livros estão cheios de vastas porções de tempo morto. Muitas páginas em que nada parece acontecer.
De repente, porém, como se o leitor puxasse uma carta mágica desse baralho invisível, algo surpreende. E não é nada extraordinário. É apenas o encadeamento normal dos dias, horas e mais horas encaixando-se umas às outras para formar o caldo de tempo. Nesses momentos, é como se flagrássemos o nascimento da vida. O exato instante em que acaso e determinação se equilibram para formar outra coisa.
De repente, porém, como se o leitor puxasse uma carta mágica desse baralho invisível, algo surpreende. E não é nada extraordinário. É apenas o encadeamento normal dos dias, horas e mais horas encaixando-se umas às outras para formar o caldo de tempo. Nesses momentos, é como se flagrássemos o nascimento da vida. O exato instante em que acaso e determinação se equilibram para formar outra coisa.
É essa outra coisa que tentamos
encontrar às cegas todos os dias. Nas cartas, nos livros, no amor, no tempo dedicado à janela ou andando
com os pés afundados na areia.
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