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Mostrando postagens de setembro 2, 2017

Novo exercício

É assim que me salvo, digo a mim mesmo. Assim que deixo pra trás, que recolho o que ainda há, que volto do mergulho e saio pela praia chutando pedra, que tenho os pés na areia quente mas continuo, assim que procuro dunas móveis, que identifico e misturo o corpo a uma geografia indistinta, assim que sento por horas à sombra e conto conchas e classifico cada uma segundo cor e ranhuras e características dos sons que carregam dentro de si, é desse modo tortuoso mas próprio que digo a mim mesmo que cada mergulho é diferente do anterior e que nenhum se repete, é assim que rezo e falo você logo estará pronto para outro, logo quererá novamente estar sob a linha da água como se prendesse a respiração antes de vir à tona, você vai querer queimar a pele novamente e correr até o mar, vai desejar o sorvete, que terá o mesmo sabor, vai andar pela calçada e olhar o trenzinho da alegria e vai rir e se imaginar dando uma volta ao som de funk porque nenhuma outra música faz sentido, você vai se conven

Exercícios

O homem entra na casa e pergunta se o fio HDMI é meu, se veio com o aparelho ou já estava aqui. Se tivesse vindo, teria de levar agora. Eu digo que não lembro, talvez já estivesse aí, mas é provável que não. Gosto de sentir que posso estar trapaceando, mas não uma trapaça de modo cabal, algo de que possa me arrepender depois. Uma pequena trapaça encoberta pela memória falha, da qual desconfio, apenas. Ele recolhe o aparelho, desliga tudo em poucos segundos e senta no sofá sem pedir. Esparrama o corpo grande, moreno, flácido. Veste calça e camisa da empresa, tem o ar cansado de quem ainda precisa visitar uma dezena de domicílios naquele mesmo dia. Pra ele minha casa é apenas isso, mais uma visita. Ele estende papéis, pede que assine. Eu escrevo meu nome numa letra que é apenas esboço de outra, um traço já apagado, longe do que era dez anos atrás. O homem balança a cabeça em agradecimento. Apanha a bolsa no chão e pede licença pra ir embora. Licença pra ir embora.

Poesia

A filha entra e diz que o pai merece umas palmadas. O pai ri, mas depois volta a se cobrir de fuligem. A filha brinca ali perto, na sala, invoca bruxas enquanto o barulho de pratos e talheres aumenta na cozinha. É sábado, hora do almoço. Pela janela enxerga telhados, a sensação de estar de costas pro mar, sentido praia-sertão. O pai folheia, avança, recua, lê aos saltos, sem disciplina. Primeiro um artigo, depois um trecho de livro, em seguida postagens no Twitter, das quais não guarda nenhuma, apenas o rosto de Maysa na capa do livro. O pai escreve tentando dizer por que escreve e para quem escreve, mas sempre falha em dizer, falha em dizer o que quer dizer, e falha novamente na tentativa de se preparar para dizer o que vai dizer. Como Marguerite Duras.  A filha entra novamente no quarto e anuncia que vai cortar o caderno e que precisa de tesoura, o pai diz: pergunte pra mamãe. O pai quase nunca diz peça pra mamãe, ele mesmo se encarrega de buscar o que quer que

Mais perto do mar

É um sábado desses. Apenas o platô, esse patamar ao qual se chega sem saber mais ou menos como se foi parar ali. Mas estamos ali. E agora precisamos andar. Voltar não é uma opção, temos de ir adiante. Ou pros lados. Procurar uma saída.  Assim é o platô, região de gravidade zero onde flutuamos e os gestos parecem lentos e mesmo o pensamento escorre sem muito o que dizer. É mais fluxo que conteúdo, coisa maquinal e jamais consequente.  É disso que preciso hoje. Mecânica, peças em locomoção, estruturas contra estruturas, superfícies contra superfícies, física mínima. Uma ciência que prescinda de explicar e se contente em ser.  Leio um pouco, escrevo, arrisco um aceno à rotina, falo o que me vem à cabeça, penso numa história, imagino outra, quero começar a escrever seja lá o que for, ensaio uma ligação telefônica. A mãe estará em casa? Por onde andará o pai? E os irmãos? Todos soltos, sozinhos, ilhados. É o grande mal da família: os vínculos frouxos, prestes a se desfazer, ja

Uma conversa

Ela perguntou de repente: O que você quer? Você, respondeu convicto, uma certeza então impalpável, gesto inconsequente do qual não se arrependeria pelos próximos meses. Até que finalmente chegasse o dia. Disse sim. Continuou a responder positivamente a todas as perguntas que lhe fazia, numa limpidez desarmada que tornava tudo mais rápido. O tempo corria para ambos. Houve silêncio depois. Era madrugada de sábado, tinha visto amigos nas redes sociais numa festa pra qual tinha se programado mas da qual desistira horas antes. Agora estava sozinho em casa. Não queria nem desejava nada. Levantou e foi até a geladeira, tomou água, acendeu um cigarro. Uma conversa.   Contados todos os minutos, tudo devia ter levado pouco mais de uma hora. Duas? Talvez. Tinha memória ruim, dessas que eliminam convenientemente episódios, apagando vestígios de erro, ajudando a seguir em frente, escolhendo as cores e borrando os precipícios. Era uma memória trapaceira. No dia seguinte acor