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Mostrando postagens de julho 27, 2018

Exercício III

Trouxe comigo mais que o corpo do pai. Trouxe o sangue. Trouxe os olhos e a boca, as pernas e os braços, o torso e os pelos que recobrem os dedos, as costas e os medos, a vingança e os sonhos, os modos de rir e beber. Trouxe a vida que o pai não viveu porque ele mesmo era morto muito antes de estar vivo.  Trouxe o cheiro do pai, esse que me acalmava quando era criança e pedia pra usar uma de suas camisas porque a saudade era tanta e ele nunca estava perto, nunca presente. De maneira que me restava apenas esse odor próprio, uma mistura do suor das noites de trabalho e amor fora de casa com os vapores domésticos, a comida da mãe, os sabonetes que usava, os perfumes com que se banhava antes de sair e não voltar.  Do pai vieram também a língua, a fala, o tempo sem raiz, a falta de rostos dos avós, a linha da família que se perdeu, o sangue diluído depois de tantos cruzamentos, as histórias de outro pai que não era o meu, o tio perdido na selva amazônica ainda nos anos 1970, a tia que e

Exercício II

Ano passado desejei entregar tudo, a vida desmoronando aos bocados. Tudo sempre se danifica. Feito essas paredes nas quais mal encostamos e os pedaços de reboco úmido esboroam, espalhando-se pelo chão. A sensação de que o mundo está condenado. A avó costumava dizer das coisas que não tinham mais expectativa. Estão condenadas. Era uma sentença. Esta camisa está condenada, esta comida está condenada, esta criança está condenada. Um arroz que a mãe salgasse porque estava distraída pensando no pai: está condenado. Uma parede que o pedreiro erguesse torta porque depois do almoço tomara uma pinga na bodega antes de voltar ao trabalho: está condenada.   Quando minha mãe conheceu meu pai, ela uma menina e ele também, a avó resmungou na soleira da porta de casa: está condenada. A mãe não deu ouvidos. Jamais daria. Precisei estar no sertão para descobrir que a água amolece e o sol cresta e quase tudo é morto antes de nascer. É uma lei natural. Sempre imaginei o contrário, mas não é.

Exercício I

Fiz a arribação às avessas. Voltei pro sertão porque nunca fui do sertão. Esta geografia morta não diz nada, garranchos de vegetação, traços de um rascunho esquecido por algum viajante que passou por aqui e agora já se estica em alguma cama de uma cidade que não sabemos qual é. Conhecia de estudar e ler, figurações de uma vida, projeções de um universo, uma estética de escola decorada às pressas para a prova do dia seguinte. O sertão da literatura não é o sertão de verdade. O sertão de verdade não é em toda parte, é exceção. Não é em parte alguma. É uma negação. Não é lugar mágico. É uma travessia sem volta. Um encontro de morte que promovemos quando a morte alcança de fato. Um lugar pra esquecer as dores. Deixá-las aqui a morrer de fome e sede, perecendo dia após dia, desidratadas do mínimo de que necessitam, viventes abandonados para que encontrem a própria sorte. Mas não vim ao sertão pra morrer, vim pra chorar, cumprir o rito e depois secar novamente. Morrer é mais fácil

San Pedro

Levei mais de um mês até poder voltar. E agora estou aqui.   Me pergunto se é ficção ou real. Se escrevo o que falo, e assim entendo melhor o que preciso entender. Ou se invento o que preciso falar, e desse modo me afasto do que é mais necessário. De qualquer forma, levou todo esse tempo. Como uma volta para muito longe ao longo da qual vamos costurando as pontas e suturando ao mesmo tempo, atando pele com ele, desatando os fios enredados. Voltei por causa de um sonho. Ontem, o San Pedro apareceu antropomorfizado. Não era o prédio em ruínas que é na frente da praia, mas uma pessoa que me procurava e dizia que tinha coisas a falar sem falar de fato. O prédio, hoje apenas esqueleto deixado a comer-se de maresia, de repente tinha esse rosto magro e cabelos mais longos que me encarava e pedia para que entrasse mais fundo. Não parasse em frente, mas entrasse e conhecesse as dependências. As mortes, os suores, os gozos e o frio. Ali dentro uma mulher parira uma menina, u

Vozes

Anotei, mas esqueci. Colado ao tempo. O de agora, neste instante. Não o tempo de muito tempo atrás, tampouco o futuro. Talvez fosse o caso de escrever bilhetinhos no caderno. Uma cor. O traço de um personagem. O sentimento ao fim de um dia. Extenuante. Uma palavra que leva à outra etc.  Como se apagasse os rastros, ia reescrevendo sobre papel já usado, mas cada vez que abria o caderno era como se lesse uma nova história. Até mudava de pessoa. Era automático. No meio da frase, a primeira cedia à terceira e então retomava a anterior, numa narração pendular que assumia a pessoalidade ou a rejeitava conforme a ocasião e a matéria. Assim podia dizer: eu fiz. Ou: ele fez.  Eu falo, ele fala.  Uma história curiosa no curso da qual essa modulação podia determinar não somente as vozes, mas também o tipo de acidente e a duração dos fenômenos que seriam contados de agora em diante.  

O morto na praia

O morto da praia talvez não saiba da lua vermelha. Morreu sem que a visse, ou talvez a tenha visto e por isso mesmo entrou na água no dia anterior e de mansinho foi dando passos seguros. Agarrando-se ao rendado que as ondas produzem, cobriu-se até a altura do peito e depois do pescoço e finalmente da cabeça. Então, já totalmente submerso, ouvindo da cidade que deixou pra trás somente o rumorejado filtrado, som coalhado na água, andou mais alguns metros. Até que não restassem mais nem som nem luz nem frio, apenas gesto deliberado. Ou quem sabe tenha sido reflexo tardio de uma tarde na infância. De repente, o homem, que passara a manhã inteira com os pés enfiados na areia, lembrara de algo. Um amigo da escola. Uma professora. Um rabisco no caderno.   O homem da praia é o corpo esquecido e encontrado hoje pela manhã. Carregavam-no na caixa de metal. Dois homens de cada lado. É preciso quatro vezes mais pessoas para suportar o peso de uma apenas. Conduziam-no à frente