Pular para o conteúdo principal

Exercício II

Ano passado desejei entregar tudo, a vida desmoronando aos bocados. Tudo sempre se danifica. Feito essas paredes nas quais mal encostamos e os pedaços de reboco úmido esboroam, espalhando-se pelo chão. A sensação de que o mundo está condenado.

A avó costumava dizer das coisas que não tinham mais expectativa. Estão condenadas. Era uma sentença. Esta camisa está condenada, esta comida está condenada, esta criança está condenada. Um arroz que a mãe salgasse porque estava distraída pensando no pai: está condenado. Uma parede que o pedreiro erguesse torta porque depois do almoço tomara uma pinga na bodega antes de voltar ao trabalho: está condenada.  

Quando minha mãe conheceu meu pai, ela uma menina e ele também, a avó resmungou na soleira da porta de casa: está condenada. A mãe não deu ouvidos. Jamais daria.

Precisei estar no sertão para descobrir que a água amolece e o sol cresta e quase tudo é morto antes de nascer. É uma lei natural. Sempre imaginei o contrário, mas não é. A água expande, convida ao movimento, o sol impõe uma quietude que é também uma espera. Quem está sob o sol ou está morto ou aguarda algo que possivelmente morreu.

Vim ao sertão pra esperar e matar. Cavar um buraco perto da serra nesta cidade cujas pessoas não conheço e a quem dou apenas boa tarde e boa noite e aqui deixar pra trás o passado que não toquei. Feito isso, deitar fora o peso do pai. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d