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Mostrando postagens de outubro 17, 2015

Caboclismo moderno

Desde que se entenda que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra e assim por diante, é impossível se confundir a respeito das diferenças e semelhanças entre uma coisa – jornalismo - e outra coisa – publicidade, pop-ups e afins. Esse preâmbulo nada teorético impõe-se a quem quer que se aventure a analisar um produto que aqui vou chamar de X. X apresenta-se como experiência jornalística. Faz uso de reportagens, artigos e ensaios, mostra-se atento aos movimentos da cidade F. e investe pesado nas mídias sociais, como qualquer veículo de comunicação faz hoje, além de destinar ampla fatia de dinheiro para vender-se nos veículos tradicionais de imprensa.   Ocorre que X não é um jornal, tampouco um site noticioso, menos ainda uma plataforma desinteressada de narrativas cuja liberdade de publicação vai até onde a vista alcança. X é um híbrido difícil de definir. A rrisco a dizer que X é um modelo de negócios travestido de hub de narrativas, para usar uma expressão da moda.

Espera, silêncio, contenção

De vez em quando é preciso fotografar a cidade num instantâneo curioso, engraçado, não porque acaba de passar um vendedor de morangos de bicicleta, morangos de bicicleta, repito, mas porque todas as antenas estão ligadas nos dois jogos de futebol dos dois times locais, o trânsito flui, as pessoas se enfiaram em casa, na janela em frente onde normalmente não há nada além dos apetrechos de cozinha surgiu uma bandeira de time, as ruas se esvaziaram e não se ouve nada além de um ou outro grito de gol abreviado porque um atacante entrou em impedimento ou porque a bola bateu na trave. É curiosa a imagem de uma cidade assim, suspensa, uma cidade tão violenta, desordenada, subitamente tão cordial, calada, até ensimesmada, como se à espera de uma visita importante, por isso mesmo resolve adotar comportamentos diferentes dos habituais, senta à mesa com a família, usa guardanapo e pede licença antes de recolher os pratos. Aqui, onde as pessoas costumam buzinar no instante seguinte a

Linguagem morta-viva

“A poesia de uma álgebra desconhecida” é a poesia desconhecida ou a álgebra de uma poesia desconhecida? Desconhece-se o que, afinal, a poesia ou álgebra, mais uma que outra, ou ambas em porções iguais? Sabe-se nada do que vai adiante do nariz, ou apenas no caso da poesia é que o desconhecimento se mostra potencialmente relevante? Contentar-se com o que se sabe é sinal de que atingimos o gozo, estamos satisfeitos com a relação custo/benefício ou é meramente uma acomodação de desejos tendo em vista que estar à procura da poesia de uma álgebra desconhecida no dia a dia, sem essa retórica surrealista, traduz-se mais por dor e sofrimento e menos por encanto e paixão?  São perguntas que não se respondem numa tarde de sábado em Fortaleza, enquanto a cidade silencia e da varanda de casa consigo enxergar a tampa do estádio de futebol onde agora dois times se esbatem na luta por uma vaga na divisão de acesso. De todo modo, não custa tentar entender as maneiras de se assustar, q

Fórmula para a eficácia

  Foi explicando e enquanto explicava recorria a uma espécie de gráfico com altos e baixos, picos e depressões, incrível a eficácia pedagógica dos desenhos, facilitam o que a gente custa a entender lendo palavras, aqui está o problema, identificou apontando com uma varinha de bambu. Aqui, exatamente, o problema, e continuou a exposição, agora mordendo também a ponta da tampa da caneta, parecia nervoso, excitado, prestes a chegar a alguma descoberta incrível que se chega depois de muitas semanas de cálculo preciso, incansável, uma maratona de estudos e fórmulas que, se bem aplicadas, e estas parecem bem aplicadas por ele, garantem o sucesso de uma empreitada genial como aquela. Aqui, repetiu, mas de repente não estava mais tão seguro do quanto pretendia dizer. Parecia, sei lá, sonolento, ou apavorado. Sonolento, escolhi. Aqui começa o problema, repare no contorno, nessa membrana, perceba como foi se formando ao longo do tempo, cada célula se juntando a outra para forma

Palavra-secreta

  Mas talvez isso tudo não passe de influência indireta e ainda mal digerida dos filmes do Malick, esses mesmos que de tempos em tempos volto a assistir na tentativa de encontrar não qualquer resposta, mas a resposta, essa que ilumina, sintetiza, condensa, alguma coisa que não vi, algo que deixei escapar, uma senha, uma palavra-secreta, um sentido qualquer que explique por que afinal de contas as coisas são como são. É uma fixação, talvez mórbida, talvez infantil. 

Mãos

Quase fim do ano. Diabo de tempo pra voar, a gente fica entretido, olha os próprios pés, olha as mãos, entra janeiro e começa novembro, uma ligação direta, um gato. O tempo agora é uma gambiarra, um atalho entre tempos extremos, temos noção de quando começa, quando termina, mas essa noção é cada vez mais diluída, começo e fim misturados, apenas continuidade, fluido, uma reta. É mais um rito moderno-ancestral que se perde.   Uma coisa que chamava minha atenção: mãos. Minhas mãos. O deslocamento de ter mãos e sabê-las usar para escrever, por exemplo, ou desenhar ou fritar um ovo, que seja, isso de ter mãos e fazê-las coincidir com o desejo, isso de ter mãos e olhar pra elas e elas estarem ali, ao comando. O deslocamento. Tem uma coisa estranha desde sempre. Quando era criança e voltava pra casa com uma caixa e dentro da caixa um videogame, imediatamente pensei: esse objeto tem valor pra mim, mas, se esqueço aqui, no ônibus, num canto, e fico olhando pra ele à di

A puta

Os cheiros da avenida, fritura, salgado, carne e sorvete, churrasquinho e algodão. Tinha chovido, é outubro, quase fim do ano. Me desviei dos patins em alta velocidade, os meninos saltam a lixeira, um deles cai e fica sentado, sem camisa, fone de ouvido, calça jeans, os outros riem mas logo se calam e voltam a saltar, uma garota voa na direção contrária, vou acompanhando até se perder. Encontro uma puta. Ela é morena, cabelo liso, preto brilhoso, pouca roupa, os olhos chamejando de algo que sei o que é, mas não pergunto porque também tenho cá e por medo prefiro deixar assim, guardado. Eu e a puta, embora tenhamos muita matéria comum, passamos um pelo outro sem dizer nada. A puta para na frente. É bonita. Vinte e um? Vinte e cinco? Procuro pastel, mas lembro que não como pastel. Tinha parado de comer carne e odeio pastel de queijo. A puta pede que eu compre um pastel de queijo. Ela adora pastel de queijo, repete.  A puta sorri. A puta segura minha mão.

Lusco-fusco

Tinha pouco tempo, quase nenhum, e mesmo assim foi. Era tarde, quase noite, esse lusco-fusco, uma indefinição que se transforma em cor, intercambiando sentimentos.  Era quase ano novo, as lojas ainda fartas de sobras de Natal, presentes dependurados nas prateleiras, a ressacada da boa vontade, o entre o tempo, dois feriados assim espremidos e no meio deles a rotina capengando.  Maré baixa, quase alta, abriu a mochila e sentou. Tinha esquecido que não faltaria, tinha combinado que não faltaria, mas acabou faltando e esquecendo. O bonito do lusco-fusco é a transição cromática, a confusão, pensou que um extraterrestre não saberia distinguir a hora de recolher e a hora de despertar. Os bichos, galinhas e vacas, conhecem o circuito invisível que regula as horas, mesmo sem saber o que são horas nem caminhar com relógios. É um entendimento frágil esse de tocar o tempo e vê-lo passar.