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Espera, silêncio, contenção



De vez em quando é preciso fotografar a cidade num instantâneo curioso, engraçado, não porque acaba de passar um vendedor de morangos de bicicleta, morangos de bicicleta, repito, mas porque todas as antenas estão ligadas nos dois jogos de futebol dos dois times locais, o trânsito flui, as pessoas se enfiaram em casa, na janela em frente onde normalmente não há nada além dos apetrechos de cozinha surgiu uma bandeira de time, as ruas se esvaziaram e não se ouve nada além de um ou outro grito de gol abreviado porque um atacante entrou em impedimento ou porque a bola bateu na trave.

É curiosa a imagem de uma cidade assim, suspensa, uma cidade tão violenta, desordenada, subitamente tão cordial, calada, até ensimesmada, como se à espera de uma visita importante, por isso mesmo resolve adotar comportamentos diferentes dos habituais, senta à mesa com a família, usa guardanapo e pede licença antes de recolher os pratos.

Aqui, onde as pessoas costumam buzinar no instante seguinte ao que o sinal fica verde no semáforo, não se escuta nada, e mesmo as motocicletas deixaram as ruas e avenidas.

Duas mulheres conversam no ponto de ônibus sobre o estado geral das coisas. Uma delas trata de explicar: é jogo.

As duas assentem uma para outra, como a concordar que, num dia assim, de jogo, com os dois times atuando em campo ao mesmo tempo, cada um deles envolvido no seu próprio drama futebolístico, um tentando não cair, o outro tentando subir, é normal que estejam todos de alguma maneira com o coração na mão. 

E, enquanto não sai gol, é tudo silêncio, espera, contenção. 

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