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Mostrando postagens de setembro 15, 2020

Manual de desculpas

  Convém pedir desculpas de muitas maneiras se se quer realmente ser desculpado hoje em dia. Primeiro, em muitos idiomas e dialetos. Depois, em fusos horários diferentes. Terceiro, em múltiplas plataformas. Quarto, a públicos diferentes. Quinto, sob avatares separados e criados especificamente para cada público. Sexto, de variadas formas, do poema tradicional ao haicai, passando pelo texto em prosa e finalmente chegando à mensagem de celular curta e repleta de emojis. Sétimo, em épocas diferentes do ano. Oitavo, nas muitas regiões do país no qual se pretende obter a desculpa. Nono, em bairros mais periféricos e mais centrais. Décimo, em libras. E por aí vai. A lista é interminável. Há muitos modos de se pedir desculpas, nenhum realmente eficiente. Eu, por exemplo, já me desculpei sendo evasivo, dizendo apenas: me desculpo, sem detalhar realmente pelo que me desculpava e a quem se destinava o pedido. Resultado: à falta inicial, cuja paga já era exorbitante, somou-se mais essa, fazendo m

A ciência da máquina de lavar

  Às vezes acontece de esquecer a roupa na máquina e então precisar voltar e acionar novamente o mecanismo que faz as pás girarem, mas elas giram de fato? Não, as roupas é que entram no movimento centrífugo e lá permanecem, passando do molho curto ao molho longo, a depender do gosto. Antes, porém, ficam em repouso, enxaguando. Submersas, perdem a sujeira, despem-se de oleosidade. Se muito encardidas, embranquecem. Se repletas de marcas, alvejam. A máquina é consultório, lugar aonde vão para se recuperar e deixar para trás o que quer que seja. Quando a esqueço em funcionamento, tenho sempre essa sensação de que falta algo. Como um sexto sentido que permanece alerta e voltado exclusivamente para esses pequenos eventos da casa: a luz acesa, o fogão ligado, a geladeira aberta, a TV iluminando a sala no meio da noite. Assim é com a roupa deixada dentro da máquina. É um desperdício, digo a mim mesmo ao descobrir que as peças que havia jogado na boca aberta e depois fechado ainda estão lá. Ma

Um trecho de Roberto Carlos

  Às vezes é apenas uma imagem, noutras uma sucessão de quadros. O cômodo desarrumado, a mulher apenas de sutiã com o rosto contorcido, o homem sobre o seu corpo miúdo, a cama desfeita, os gritos. O que fazia ali? Eu não lembro. Tinha cinco anos, talvez seis. Havia passado a tarde na casa da vizinha quando o marido chegou. Encheu-se de fúria, bateu na mulher, ou julgo ter batido, não posso ter certeza. Não porque eu estivesse lá, por outro motivo – qual? Suponho que já houvessem discutido antes, que aquele na verdade era o desfecho e não o começo. Ao chegar, punha fim ao que tinha iniciado em minha ausência. Talvez houvesse passado as últimas horas consumido por isso, o desejo de retornar à casa e retomar a diatribe, o rancor e o excesso. O quarto, antes rigorosamente posto e agora desfigurado, era a imagem dessa capacidade que eu não conhecia de pôr tudo a perder; de, num instante, corromper o ambiente, contaminá-lo, atravessá-lo por um ânimo de conflito. O homem inteiro anunciava iss