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Um trecho de Roberto Carlos

 

Às vezes é apenas uma imagem, noutras uma sucessão de quadros. O cômodo desarrumado, a mulher apenas de sutiã com o rosto contorcido, o homem sobre o seu corpo miúdo, a cama desfeita, os gritos.

O que fazia ali? Eu não lembro. Tinha cinco anos, talvez seis. Havia passado a tarde na casa da vizinha quando o marido chegou. Encheu-se de fúria, bateu na mulher, ou julgo ter batido, não posso ter certeza. Não porque eu estivesse lá, por outro motivo – qual?

Suponho que já houvessem discutido antes, que aquele na verdade era o desfecho e não o começo. Ao chegar, punha fim ao que tinha iniciado em minha ausência. Talvez houvesse passado as últimas horas consumido por isso, o desejo de retornar à casa e retomar a diatribe, o rancor e o excesso.

O quarto, antes rigorosamente posto e agora desfigurado, era a imagem dessa capacidade que eu não conhecia de pôr tudo a perder; de, num instante, corromper o ambiente, contaminá-lo, atravessá-lo por um ânimo de conflito.

O homem inteiro anunciava isso. Sua presença era a de uma máquina de guerra, os olhos esbugalhados, a boca repuxada e os braços em riste. A venta dilatada como o animal a quem lhe prendem as pernas, impedindo o bote.

Enquanto discutiam, a mulher lhe atirava objetos ao alcance da mão. Primeiro cigarro, sapato, uma carteira com moedas. Em seguida, as tiras de roupas rasgadas. Depois um vidro de perfume que se espatifou contra a parede e deixou a casa com esse cheiro por muito tempo e que agora subitamente recordo, sem entender por quê.

Fiquei encolhido no canto à espera do fim, de qualquer fim. Mas posso também ter saído escondido, de modo que, atrás do muro ou perto da porta, continuasse a ouvi-lo disparar impropérios. Porque ela, de repente, se tinha calado, como se aceitando tudo, feito alguém que se convencesse ou desistisse.

Seguiram-se minutos sem clamor. Então ouvi um suspiro, ou penso ter ouvido, como algo que resfolegasse, uma respiração entrecortada. Nesse ponto a memória é falha. Cochichavam, dormiam, riam de mim?

O homem não a interpelava mais como num rito no qual ela devesse assumir algum pecado, mas assobiava uma canção do Roberto Carlos enquanto lhe perguntava se lembrava daquele trecho.

Uma passagem específica que decorei e, em casa, perguntei ao pai se conhecia. Ele respondeu que sim, e assobiou a música. É essa, eu lhe disse.

Dias depois a mãe quis saber por que não ia mais à casa de M. – era esse o seu nome. Enrolei uma resposta e fui ao quintal brincar. Nos fundos, perto das bananeiras, encontrei roupas de mulher enterradas. A alça do sutiã, uma perna de calça rasgada. Cacos do vidro de perfume. Um álbum de casamento. Pulseiras.

Mas o casal não morava mais na casa. Haviam se mudado na véspera, contou uma vizinha. Uma mudança rápida, no meio da noite, feita em silêncio e sem a ajuda de ninguém, como era de praxe no bairro, quando todos se reuniam para acomodar os poucos objetos na traseira de um caminhão.

Bati na porta. Nada. Era verdade, a casa vazia não respondia, mas a porta então se abriu num movimento leve. Passava das duas horas da tarde. Entrei.

De tudo que tinha visto, havia restado quase nada. Apenas um papel dobrado com o pedaço da música cuja letra fui esquecendo aos poucos.

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