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Mostrando postagens de dezembro 10, 2024

A cidade é um ovo

A cidade é um ovo, escuto com frequência desmedida, ao que os mais exagerados acrescentam, em tom ainda mais incisivo: um ovo de codorna, o dedo em riste a advertir o interlocutor ingênuo. Um ovo pelo que tem de diminuta, claro, e isso sempre me pega, pra usar uma gíria de fabricação mais recente (já sem muito uso, tanto ela quanto a palavra gíria em si), porque no fundo se trata de uma metrópole, a quarta maior do país. Uma cidade com três milhões de pessoas e mais de uma centena de bairros. Espalhada como um ovo na frigideira, quente como ovo cozido, abafada como ovo na cuscuzeira, mas não exatamente um ovo, no seu sentido figurado, se é que consigo me explicar. Mas há quem insista: a cidade é um ovo. O que quer dizer, afinal de contas? É coisa para se investigar, apurar bem antes de falar e repetir, até para encompridar aquela conversa na mesa de bar ou na fila do pão, no cinema ou na praça, quando duas pessoas desconhecidas descobrem amigos comuns e intuem, como numa epifania, que ...

A língua do “p”

 Pensei em riscar algumas palavras do léxico de 2025, a começar por “mentoria” e seus derivados (mentor, mentorado e por aí vai), mas não sei se conseguiria concluir o ano que nem se iniciou sem fazer alusão ao vocábulo, onipresente e versátil sob sua manta de tecnicidade descolada e luminosa, acessível e mistificadora ao mesmo tempo. Desisti, afinal, porque a economia das trocas cumpre o trabalho por si, ou seja, o próprio uso (ou desuso) cotidiano se encarrega de pendurar toda terminologia aparentemente sem finalidade, senão a de parecer sumamente moderna e inteligente sem sê-lo. Resolvido o impasse da mentoria, que pus de lado para evitar aborrecimento em demasia, passei então ao “hiperfoco”, outro termo que tenho ganas de atirar longe sempre que o ouço. Foi só pronunciá-lo, contudo, que desenvolvi eu mesmo um hiperfoco no hiperfoco (atenção excessiva e injustificadamente concentrada num objeto qualquer, de preferência irrelevante e sem qualquer efeito prático no dia a dia, mas ...

O resto é memória

Encontrei fotos da família que considerava perdidas, estavam sob a guarda de alguém. Cenas do dia a dia, uma sala, um sofá, um aniversário. Entre elas, minha avó e meu avô paternos, cujo rosto não conhecia. Era um estranho até então, seus olhos rasgados, o cabelo cortado rente e a testa alongada, o pescoço largo e os braços esticados ao lado da esposa, ainda muito jovens. Minha avó era bonita, os mesmos traços que vi se repetirem noutras mulheres de casa, uma tia, uma sobrinha, a irmã, todas participantes de um jogo secreto. Vê-la foi como remontar um quadro de peças faltantes, contornos cuja frequência se devia a essa espécie de molde não datado e jamais encontrado. Estranho que tenha aparecido apenas agora depois de tanto tempo, sem que eu a procurasse, tampouco sem que tenha pedido nem suposto que ainda restassem essas imagens, dadas como extraviadas já havia tanto. Eis que surgem de repente, os troncos antigos subitamente à mostra, como diria a outra vó, revelando esse desejo mal d...