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Mostrando postagens de outubro 16, 2017

Uma conversa com H (parte iii)

Mas existir não bastava, e tudo que havia dito até ali sofria de um mesmo mal: eram palavras excessivamente alegóricas, tudo metáfora, nada que dissesse do sentimento o que pudesse haver de raiz, nenhum mineral, nenhum amor como a pedra que afunda, apenas perfumaria e esse jogo impetuoso de expressões com duplo ou triplo sentido, palavras empilhadas que ruíam ao menor tremor de mãos. H escutava e escutava. Depois franziu a testa, olhou pra longe e chorou. Talvez até um choro falso, pensei com alguma crueldade. Apenas a lágrima que é mais uma lembrança da glândula, uma reação do músculo, o corpo que se rebela contra o automatismo. Não o ataque, mas a simulação, não o golpe, mas o prenúncio do golpe e da dor que se seguiria. Então H chorava para que não precisasse chorar depois, numa economia de gesto e afeto que explicava muita coisa. E mesmo que não concordasse, ainda que calasse sobre a imprecisão de tudo que falava e a insuficiência das coisas escritas, mesmo as que aparent

Uma conversa com H (parte ii)

E de repente revi tudo. E nesse movimento também revi H e todo o processo, do início até o fim. Era importante apanhar as coisas pelo nome, ele mesmo acrescentou, não exatamente compreendê-las, mas saber que estavam ali e que tinham esse rosto, não eram como ideias soltas, não como as coisas sem contorno, umas fantasmagorias. Eram ideias com pé e cabeça e tronco, cheiro e boca, cabelo, costas, dedos e unhas, quadris e ventre. O fato de que as ideias de H tivessem ventre animava ainda mais a conversa, foi só nesse momento que senti: talvez ele chegue aonde quer, a esse ponto indefinido ainda, mas que existe, talvez consiga delimitar e recortar e se aproximar e tocar esse ponto crucial. Os sentimentos não são como animais fantásticos, disse mais uma vez, e era tão comum em tudo que falava a referência a animais, ao que não tem arbítrio, a tudo que é apenas força e ímpeto. Lembrou da expressão usada por Dante quando chega ao inferno: selva selvagem. Era ali que H desejava vi

Uma conversa com H

Evitei essa conversa com H por muito tempo, seja por que razão for. Mas agora foi difícil escapar, estávamos ambos ali, no mesmo quarto, H com ar cansado e eu disposto a ouvir o que estivesse a fim de dizer porque já não podia correr, eu também farto desse jogo de gato e rato. H, essa letra muda, começou num tom autodepreciativo que não me comoveu nem um pouco. Em seguida desfiou o rosário conhecido de sempre: dores, exaustão, agora dera pra sentir também os ombros e os joelhos, não sabia se somatizava tudo ou se era a idade se impondo com seu cortejo de pequenas falências físicas. Fosse o que fosse, acentuava essa sensação de que atravessava um deserto munido apenas de caneta e papel.   De todo modo é bom cuidar disso, respondi tentando soar o mais empático possível, já que as agonias de H eram também as minhas, suas aflições, dúvidas e vacilações tão próximas de tudo que eu mesmo sentia. Mas, naquele momento, era importante que H entendesse o peso de tudo. E ele entendia, t