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Uma conversa com H (parte iii)

Mas existir não bastava, e tudo que havia dito até ali sofria de um mesmo mal: eram palavras excessivamente alegóricas, tudo metáfora, nada que dissesse do sentimento o que pudesse haver de raiz, nenhum mineral, nenhum amor como a pedra que afunda, apenas perfumaria e esse jogo impetuoso de expressões com duplo ou triplo sentido, palavras empilhadas que ruíam ao menor tremor de mãos.

H escutava e escutava. Depois franziu a testa, olhou pra longe e chorou. Talvez até um choro falso, pensei com alguma crueldade. Apenas a lágrima que é mais uma lembrança da glândula, uma reação do músculo, o corpo que se rebela contra o automatismo. Não o ataque, mas a simulação, não o golpe, mas o prenúncio do golpe e da dor que se seguiria.

Então H chorava para que não precisasse chorar depois, numa economia de gesto e afeto que explicava muita coisa. E mesmo que não concordasse, ainda que calasse sobre a imprecisão de tudo que falava e a insuficiência das coisas escritas, mesmo as que aparentavam toda a força e convenciam por qualquer razão. Mesmo em silêncio eu sabia que H ruminava tudo, do começo ao fim, e sabia que entendia. Mais que entender, eu sabia que procurava se cercar do significado do que estava alcançando e viver essa descoberta.

Esse lugar de descanso não existe, H, esse lugar está além, não é pra você, tampouco pra mim, essa selva selvagem é agora.

H riu, não era uma letra muda, agora ria. Não deixava de surpreender que ainda fosse capaz de rir. 

Falamos ainda por poucos minutos, H revirando a dobra da camisa desabotoada até o peito liso, nada de pelos, apenas brancura e pele, as pernas cruzadas, os pés descalços e o cabelo assanhado, os braços escuros, a boca fina formando o arco que é seu modo de dizer que concordava com tudo que eu tinha dito, ainda que não fosse levar nada em consideração. 

Depois se levantou e foi até a porta do banheiro. Lá, recortado contra a luz, acendeu um cigarro, soprando pequenas nuvens de fumaça para longe, para a janela, novamente fora do quadro no qual eu tentava fixá-lo. Mais uma vez essa presença fugidia que forçava limites.

 H, eu falei. Volte pra cá.

Ele continuou em pé. Perguntou finalmente: ainda não terminamos essa conversa?

Ainda não.

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