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Mostrando postagens de janeiro 28, 2021

Visagem

  A visão da avó saindo da igreja em passos lentos, o vestido azul de que gostava, o impróprio do horário, às cinco da tarde, o pipoqueiro ao lado que não atinava para nada, tudo isso me fez desejar que a imagem fosse tão somente o que era: a projeção do corpo que não existia, o vestígio da existência, a poeira. A avó tinha morrido, eu sabia, todos sabiam, e aquela era a sua missa de corpo presente, a cerimônia da qual eu tinha saído porque não aguentava o cheiro de velas e os quadros da via-crúcis na parede, tampouco o perfume forte da tia Ofélia, que se aprontava mesmo para ir à esquina porque o amor podia bater à porta a qualquer instante, mesmo numa igreja de um bairro na periferia numa quinta-feira de janeiro de um ano qualquer. A avó não acenava, não olhava para nada fixamente, era mais como se estivesse esperando ou tentasse se fixar num ponto muito além do seu horizonte. Ela não me via, embora lançasse olhares em minha direção, eu não a via, ainda que eu estivesse lá e não no b

Memória

  Tenho medo de estar perdendo memória, não fatos ou coisas importantes, mas miudezas, o banal: um nome, uma historinha boba, uma trivialidade que antes vinha fácil e agora se esconde em algum lugar da cabeça. Essa é a impressão que tenho, a de que brinco de pega-pega com palavras ou tempos, tento encontrá-los, ora consigo, ora não, e quando ocorre de sair à procura e voltar de mãos vazias, fico preocupado. Mas uma preocupação leve, que encaro como uma quase travessura, como se um diabrete qualquer estivesse pregando peças enquanto eu me permito enganar. Outro dia, a caminho da aula de natação, esbarrei com um amigo da faculdade, a quem não via havia uns dez anos e chamei estupidamente de “amigo”, como quem cumprimenta um estranho numa parada de ônibus. Enquanto conversávamos, uma parte do meu cérebro promovia uma varredura nas memórias recentes enquanto outra parte se concentrava na conversa em si, respondendo o mais lentamente possível, de maneira a ganhar tempo, sem, contudo, apa

Na academia

  Estar numa academia depois de tanto tempo é um choque que eu tento disfarçar simulando naturalidade com equipamentos diante dos quais eu paro e franzo o cenho, braços e pernas metálicos cujo funcionamento eu intuo, mas quase sempre erro. Porque ou a altura está desregulada, ou a quantidade de peso, ou o desenho do movimento que devo fazer, então de vez em quando tenho de checar novamente o número do exercício e assistir ao vídeo com um cara musculoso ensinando tudo como se fosse fácil. Ou chamar o instrutor e perguntar de novo como se faz aquilo. Isso apenas nos primeiros dois dias, claro, depois segue-se imediatamente esse período de euforia que a gente conhece bem. A gente: pessoas que começam a fazer academia depois de um período relativo de décadas de sedentarismo. Nele o novato (eu) se sente irracional e subitamente mais confiante, de modo que passa a não somente fazer mais séries, incrementando as aulas do dia, como também a acrescentar mais peso nos movimentos mais exigentes,