Pular para o conteúdo principal

Memória

 

Tenho medo de estar perdendo memória, não fatos ou coisas importantes, mas miudezas, o banal: um nome, uma historinha boba, uma trivialidade que antes vinha fácil e agora se esconde em algum lugar da cabeça.

Essa é a impressão que tenho, a de que brinco de pega-pega com palavras ou tempos, tento encontrá-los, ora consigo, ora não, e quando ocorre de sair à procura e voltar de mãos vazias, fico preocupado. Mas uma preocupação leve, que encaro como uma quase travessura, como se um diabrete qualquer estivesse pregando peças enquanto eu me permito enganar.

Outro dia, a caminho da aula de natação, esbarrei com um amigo da faculdade, a quem não via havia uns dez anos e chamei estupidamente de “amigo”, como quem cumprimenta um estranho numa parada de ônibus. Enquanto conversávamos, uma parte do meu cérebro promovia uma varredura nas memórias recentes enquanto outra parte se concentrava na conversa em si, respondendo o mais lentamente possível, de maneira a ganhar tempo, sem, contudo, aparentar confusão.

A luz apareceria apenas duas semanas depois, enquanto varria um canto da cozinha quando, num lampejo, tudo se iluminou, eu pronunciei baixo os dois nomes do colega.

O fato de que estivesse ocupado com tarefas do dia a dia, a cabeça descansada e sem obrigações senão essa de ajudar os membros superiores a recolher o lixo, me fez imaginar que, de agora em diante, tudo se passaria dessa maneira e lembrar de certas coisas seria uma operação involuntária, algo contra o que eu não poderia lutar, apenas aguardar pacientemente e então comemorar quando finalmente achasse, se achasse.

Então juntei cadernos e decidi anotar. Tudo. Comecei ontem. Palavras corriqueiras, datas, nomes, registros diários feitos com a finalidade de me auxiliar quando eu de fato precisar, como eu imagino que um dia talvez eu precise. Palavras ordinárias, mesa, sofá, banheiro, xampu, cabelo, jogo, almoço, panela, chuveiro, piscina, guarda-roupa, lençol e por aí vai.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d