Em que momento a gente se acostumou com as sirenes? Não lembro agora, mas acho que, no final de abril, enquanto a paisagem sonora era atravessada por essa estridência, entendi que a audição havia normalizado o sinal de alerta. Não era mais como um grito desesperado proferido por uma agonia secreta da qual eu sabia pouco. Era como o esguicho de um corpo na rua cuja morte talvez fosse comunicada dali a horas, em escalada no jornal, somando-se aos demais números que são atualizados todos os dias, nessa contabilidade mórbida e banal ao mesmo tempo. Essa é uma das marcas da peste: a intangibilidade. Tudo é longe e perto. O amigo de um amigo, a avó de um colega de trabalho, o pai de uma pessoa a quem cumprimentei dois meses atrás. As distâncias se encurtam. Nenhum fosso é tão fundo que não possa ser transposto. Ando até a janela, me escoro com os cotovelos fincados no parapeito. Choveu pouco, o asfalto molhado. A rua vazia. Cheiro de planta. Ainda não é meia-noite. Foi a quinta
HENRIQUE ARAÚJO (https://tinyletter.com/Oskarsays)