Em que
momento a gente se acostumou com as sirenes? Não lembro agora, mas acho que, no
final de abril, enquanto a paisagem sonora era atravessada por essa estridência,
entendi que a audição havia normalizado o sinal de alerta. Não era mais como um
grito desesperado proferido por uma agonia secreta da qual eu sabia pouco.
Era como
o esguicho de um corpo na rua cuja morte talvez fosse comunicada dali a horas, em
escalada no jornal, somando-se aos demais números que são atualizados todos os
dias, nessa contabilidade mórbida e banal ao mesmo tempo.
Essa é
uma das marcas da peste: a intangibilidade. Tudo é longe e perto. O amigo de um
amigo, a avó de um colega de trabalho, o pai de uma pessoa a quem cumprimentei dois
meses atrás. As distâncias se encurtam. Nenhum fosso é tão fundo que não possa
ser transposto.
Ando até
a janela, me escoro com os cotovelos fincados no parapeito. Choveu pouco, o
asfalto molhado. A rua vazia. Cheiro de planta. Ainda não é meia-noite. Foi a
quinta ou sexta ambulância? Perdi as contas.
Moro
a poucas quadras de um grande hospital. É uma rota comum de veículos com essas
cores características, o vermelho na lateral, o branco envolvendo-o e, em algum
lugar, a sigla, encimada pela sirene. Mal fecho a boca, e outro carro passa. O contraste
entre fixidez e locomoção, barulho e silêncio, doença e saúde. A perspectiva de
quem vê o filme de uma catástrofe se desenrolar.
Penso
nesse condutor, alguém cuja atribuição é correr pelas avenidas da cidade
quadriculada em quase desespero, guiando até o destino final, perguntando-se se
o homem ou a mulher que carrega resistirá se ele reduzir a velocidade ou se
poderá salvá-lo se ele passar esse sinal vermelho. Apenas mais um.
Volto
ao sofá, onde havia permanecido por horas antes desse relâmpago noturno.
Continuo sem entender o que os dois apresentadores dizem. Sem som, as bocas não
articulam nada, nenhuma palavra chega aonde estou, nenhum significado para o
que acontece. Vivemos o déficit.
Tenho
dificuldade de dormir, então obrigo-me a uma rotina maçante. Funciona. Mas hoje
não, hoje estou como se exausto por um esforço que, em realidade, não tive. Um
cansaço de não estar cansado. Durmo encurvado, as pernas lançadas sobre o braço
da poltrona, a luz da TV projetando fantasmagorias de tempos em tempos.
De manhã
nunca parece que já perdemos tanto. As esperanças se renovam com o sono. É-se
feliz a contragosto. É o melhor horário para deixar em suspenso qualquer
contratempo, adiar o real. Demorar-se no café, fingir-se normalidade,
estender-se no carinho. E depois aceitar as mensagens no celular, as ligações
não atendidas, a rotina fragmentada.
A filha
pergunta o que é pandemia. Tenho dificuldade de lhe dizer que é uma praga como
nunca tínhamos visto. Não quero assustá-la, tampouco esconder nada. Digo que é
uma coisa ruim que acomete a todos, sem exceção, e que precisamos estar a
salvos, cuidando uns dos outros. Ela faz planos para o depois, começando todas
as frases com “quando tudo isso passar...”. Então me tranquilizo.
Lembro
que, mesmo de noite, há esse momento em que tudo se esgota e recomeça, agora
sob outro nome, um nome que estamos aprendendo a dizer.
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