Pular para o conteúdo principal

Diário da quarentena (parte 5)


Em que momento a gente se acostumou com as sirenes? Não lembro agora, mas acho que, no final de abril, enquanto a paisagem sonora era atravessada por essa estridência, entendi que a audição havia normalizado o sinal de alerta. Não era mais como um grito desesperado proferido por uma agonia secreta da qual eu sabia pouco.

Era como o esguicho de um corpo na rua cuja morte talvez fosse comunicada dali a horas, em escalada no jornal, somando-se aos demais números que são atualizados todos os dias, nessa contabilidade mórbida e banal ao mesmo tempo.

Essa é uma das marcas da peste: a intangibilidade. Tudo é longe e perto. O amigo de um amigo, a avó de um colega de trabalho, o pai de uma pessoa a quem cumprimentei dois meses atrás. As distâncias se encurtam. Nenhum fosso é tão fundo que não possa ser transposto.

Ando até a janela, me escoro com os cotovelos fincados no parapeito. Choveu pouco, o asfalto molhado. A rua vazia. Cheiro de planta. Ainda não é meia-noite. Foi a quinta ou sexta ambulância? Perdi as contas.

Moro a poucas quadras de um grande hospital. É uma rota comum de veículos com essas cores características, o vermelho na lateral, o branco envolvendo-o e, em algum lugar, a sigla, encimada pela sirene. Mal fecho a boca, e outro carro passa. O contraste entre fixidez e locomoção, barulho e silêncio, doença e saúde. A perspectiva de quem vê o filme de uma catástrofe se desenrolar.

Penso nesse condutor, alguém cuja atribuição é correr pelas avenidas da cidade quadriculada em quase desespero, guiando até o destino final, perguntando-se se o homem ou a mulher que carrega resistirá se ele reduzir a velocidade ou se poderá salvá-lo se ele passar esse sinal vermelho. Apenas mais um.

Volto ao sofá, onde havia permanecido por horas antes desse relâmpago noturno. Continuo sem entender o que os dois apresentadores dizem. Sem som, as bocas não articulam nada, nenhuma palavra chega aonde estou, nenhum significado para o que acontece. Vivemos o déficit.

Tenho dificuldade de dormir, então obrigo-me a uma rotina maçante. Funciona. Mas hoje não, hoje estou como se exausto por um esforço que, em realidade, não tive. Um cansaço de não estar cansado. Durmo encurvado, as pernas lançadas sobre o braço da poltrona, a luz da TV projetando fantasmagorias de tempos em tempos.

De manhã nunca parece que já perdemos tanto. As esperanças se renovam com o sono. É-se feliz a contragosto. É o melhor horário para deixar em suspenso qualquer contratempo, adiar o real. Demorar-se no café, fingir-se normalidade, estender-se no carinho. E depois aceitar as mensagens no celular, as ligações não atendidas, a rotina fragmentada.

A filha pergunta o que é pandemia. Tenho dificuldade de lhe dizer que é uma praga como nunca tínhamos visto. Não quero assustá-la, tampouco esconder nada. Digo que é uma coisa ruim que acomete a todos, sem exceção, e que precisamos estar a salvos, cuidando uns dos outros. Ela faz planos para o depois, começando todas as frases com “quando tudo isso passar...”. Então me tranquilizo.

Lembro que, mesmo de noite, há esse momento em que tudo se esgota e recomeça, agora sob outro nome, um nome que estamos aprendendo a dizer.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d