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Mostrando postagens de dezembro 24, 2012

Cenas de Natal

5 Falta a quinta cena para terminar, mas o que será a quinta cena? Não chegou a considerar uma pentalogia de Natal como hipótese plausível, era trabalho para outra hora, não agora, não no dia vinte e quatro, a pouco tempo da ceia, todas as comidas postas em travessas, os dois banheiros da casa disputados a tapa, a mãe correndo pra lá e pra cá. A quinta cena seria então a que vasculha no ano inteirinho uma nesga de sentido, fiapo de algum enredo? Uma narrativa de 365 dias? O fio escorregadio da meada de repente enrosca-se nas pernas. "Esse cara sou eu", escuta em todos os lares, esse cara sou eu, uma admissão de culpa? Pensa no que pode querer dizer tal frase: esse cara sou eu. Esse, pronome demonstrativo, cara, substantivo, sou, verbo, eu, pronome – as quatro palavras juntas ecoam algum tipo de consciência dos limites do homem, limites físicos e psicológicos, esse cara, não qualquer um, mas esse, este que fala, sou eu, a súbita autorreferência desconcerta o i

Cenas de Natal

4 O poeta digita, o poeta apaga, o poeta digita, o poeta apaga, e assim permanece durante boa parte da manhã, escrevendo e apagando sem encontrar a palavra certa, aquela que reluz além da mediocridade dos verbetes disparados nas redes sociais, o poeta julga-se verdadeiro, autêntico, paladino do desconcerto, alguém talhado verdadeiramente para ordenar o caos na cidade e, de passagem, espetar o dedinho buliçoso na ferida. Não há dia que não seja brindado com alguma arapuca montada pelo poeta, que é ferino, rápido e ataca furtivamente, não tem autocensura, às escondidas ri das estocadas, crê-se incumbido da nobre missão de desmascarar as banalidades, a mis en scène , detona reputações com um estalar de indicadores e, montado no Scadufax que é seu fraseado explosivo, distribui monossílabos gangrenados, defenestra inimigos, diverte-se à beça.   O poeta gargalha, toma um gole de vinho ou do que quer que esteja bebendo, coloca uma música agradável na vitrola recém-comprada, acio

Cenas de Natal

3 Encosta no caixa, veste camisa polo verde, calça jeans e sapatênis, usa barba rala, óculos, tem musculatura entre flácida e devedora de alguns meses matriculado na academia do bairro, carrega um peso nas costas mesmo quando não há peso algum nas costas. Sorri, a atendente sorri, ele sorri novamente, a atendente concentra-se nos números do cpf, pede que repita por favor os números para confirmar, ele repete, confirmado, confirmado, senhor. Em seguida quer saber onde pode embalar tudo pra presente, é logo ali, ele então leva até a moça encarregada de embalar tudo para presente um disco do Marcelo Jeneci, um livro da Clarice Lispector, um guia de tiradas do Snoopy sobre assuntos diversos como amor e felicidade (tenho um em casa) e um exemplar de O pequeno príncipe . Chega minha vez, então digo boa tarde, ela sorri, eu sorrio, pede número de cpf, sopro meu código em baforadas de três dígitos, a atendente pronuncia meu nome a meio caminho da pergunta e da constatação.

Cenas de Natal

2 Um homem na livraria diz é preciso falar com segurança e ler vagarosamente, sopesando cada palavra que ele – ele, no caso, o escritor – diz, registra, considero, e aqui o homem tosse levemente, considero um dos maiores historiados do séc. xx, um homem notável, o historiador, continua o homem na livraria, este livro em particular é um dos melhores, uma peça para ir sendo vencida aos poucos, o homem a quem se dirigiam as palavras mantém-se eternamente fechado em copas, como se diz, dou a volta e sento na cadeira, peço café e um roast beef, é um sanduíche de que gosto especialmente, leva carne, cebola, molho e outros ingredientes cuja identidade o paladar míope não discerne, então os dois homens caminham devagar até o café, puxam duas cadeiras e se sentam na mesa ao lado, seguem falando sobre o historiador e todas as palavras importantes que ele deixou como herança para nós, que estamos aqui, sentados, à espera do café, da bolinha de sorvete com calda quente de chocolate e da conta

Cenas de Natal

1 Muita gente na rua, crianças, mulheres, não há homens pedindo esmolas nas esquinas da cidade, apenas  mulheres e crianças. Uma dessas mulheres carregava uma criança no colo. A criança era gorda e ria muito porque estava molhada, tinha sido banhada há pouco, e ria porque faz calor na cidade, principalmente entre os carros, no asfalto, faz calor. No carro o ar-condicionado está ligado. A criança, um recém-nascido, gargalha, não apenas ri, mas gargalha, é uma cena bonita de Natal, a mãe pede esmolas, a criança ri, não sabe que gargalha enquanto a mãe pede dinheiro batucando de leve no vidro dos carros. O pai diz quando ela passa: não veio aqui, se tivesse vindo teria dado um dinheiro, e fica olhando no retrovisor depois que a mulher com o bebê gordinho no colo desaparece entre os carros, no meio da avenida. Faz calor, e o ar está ligado.