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Mostrando postagens de dezembro 10, 2020

Prove que você não é um robô

O inferno deve ser como uma sucessão interminável de momentos nos quais digitamos uma senha e a inteligência artificial do site ao qual tentamos ter acesso a reprova, considerando-a demasiado fraca. O que nos obriga a voltar e refazer a senha, agora acrescendo algarismos e sinais de exclamação, não a ponto de torná-la uma ameaça para nós mesmos e cair no esquecimento. Mas, a despeito desse empenho que começa a nos enfezar, a senha continua insuficiente e é rejeitada por essa entidade imaterial, numa situação tipicamente kafkiana na qual temos de provar que somos não apenas nós mesmos, mas que somos humanos e não robôs. De maneira que reatamos o fio da meada e, feito Ariadne, tornamos ao começo, agora tentando identificar padrões que tenham passado em branco, como aniversários ou números em sequência, falhas e repetições. Eliminamos então infantilidades como 010203 ou 0504030201, senhas universais cuja previsibilidade são a prova de que a média de inteligência está realmente muito aba

Casmurro

Perdoem a casmurrice, se pareci casmurro , é apenas o calor de Fortaleza neste dezembro infernal de confinamento ao cabo de dez meses quando, talvez sem razão, penso no Papai Noel do shopping. Protegido atrás de um biombo de acrílico levantando-se de tempos em tempos para deixar-se fotografar ao lado de crianças a quem, por dificuldade, escuta muito baixo, mesmo com o sistema de som instalado de modo a facilitar a troca de confidências entre os pequenos e o velhinho, que se empoleiram nas pontas dos pés e lhe pedem de bonecos a PlayStation. A fila interminável de pais e mães sobraçando sacolas, as máscaras, algumas caídas, inflando ao ritmo da respiração descompassada se precisam correr para atalhar um pequeno que escapuliu em direção a sabe-se lá que atrativo, um filhote exibido na vitrine da loja ou um palhaço que desfila sobre patinete elétrico fazendo acrobacias. A mágica postiça do Natal reproduzida na grama sintética e na música que se repete a intervalos regulares e a qual a moç

Clarice adulterada

Há no rito de lembrar a Clarice Lispector centenária o risco de perdê-la, não somente por se tratar de efeméride, palavra feia cujo sentido escapava a Macabéa.  Mas porque, na obra clariciana, impõe-se esse fundo irredutível, uma matéria-viva de linguagem que não se esgota ou se permite traduzir facilmente para o agora das redes sociais, por exemplo, para citar esse espaço no qual o nome de Clarice se transmutou, passando a figurar como quintessência de uma positividade. Como se a domesticassem, como se a quisessem palatável, mas Clarice não é digerível, tampouco domesticável. É e continua sendo escrita selvagem. Nisso tudo, portanto, mais que retomar trajetória ou mesmo reviver os dramas da autora, tinha interesse em entender na Clarice (me permitam o artigo definido que encurta distâncias) o que permanece desafiador, o que nela ainda é interrogação, o que interpela o leitor tanto tempo depois. O que move Clarice hoje? O que a mantém viva? Deixo de lado essa aura edificante que lhe em