Há no rito de lembrar a Clarice Lispector centenária o risco de perdê-la, não somente por se tratar de efeméride, palavra feia cujo sentido escapava a Macabéa.
Mas porque, na obra clariciana, impõe-se esse fundo irredutível, uma matéria-viva de linguagem que não se esgota ou se permite traduzir facilmente para o agora das redes sociais, por exemplo, para citar esse espaço no qual o nome de Clarice se transmutou, passando a figurar como quintessência de uma positividade.Como se a domesticassem, como se a quisessem palatável, mas Clarice não é digerível, tampouco domesticável. É e continua sendo escrita selvagem.
Nisso tudo, portanto, mais que retomar trajetória ou mesmo reviver os dramas da autora, tinha interesse em entender na Clarice (me permitam o artigo definido que encurta distâncias) o que permanece desafiador, o que nela ainda é interrogação, o que interpela o leitor tanto tempo depois.
O que move Clarice hoje? O que a mantém viva?
Deixo de lado essa aura edificante que lhe emprestam leituras fisgadas de frases sem contexto nas quais ela se converte numa fazedora de máximas edulcoradas que depois se replicam, muitas sequer de sua autoria, mas atribuídas a ela, como se Clarice fosse agora também avatar onde coubessem essas claricianices, ou seja, tudo que não é parte de sua obra, tudo que não é Clarice, num desdobramento a contragosto do seu mundo.
Contribui para isso talvez esse giro em falso do mercado/editoras/imprensa a partir do qual a literatura brasileira, como escreveu Laura Erber, é frequentemente visitada. Sob a condição da festiva efeméride, sucedem-se mesas e encontros ao cabo de poucos dias de intensa e prodigiosa produção e debates, findos os quais o assunto volta a ocupar o espaço que lhe cabe, ou seja, nenhum.
Uma tal “lógica de festa” atravessa então “a programação” num frenesi dentro do qual consumo e literatura se amalgamam.
É como se lhe apagássemos o mistério, como se lhe negássemos o susto, penso em contraste com a obra e imagem de Clarice.
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