Pular para o conteúdo principal

Na academia

 

Estar numa academia depois de tanto tempo é um choque que eu tento disfarçar simulando naturalidade com equipamentos diante dos quais eu paro e franzo o cenho, braços e pernas metálicos cujo funcionamento eu intuo, mas quase sempre erro.

Porque ou a altura está desregulada, ou a quantidade de peso, ou o desenho do movimento que devo fazer, então de vez em quando tenho de checar novamente o número do exercício e assistir ao vídeo com um cara musculoso ensinando tudo como se fosse fácil. Ou chamar o instrutor e perguntar de novo como se faz aquilo.

Isso apenas nos primeiros dois dias, claro, depois segue-se imediatamente esse período de euforia que a gente conhece bem. A gente: pessoas que começam a fazer academia depois de um período relativo de décadas de sedentarismo.

Nele o novato (eu) se sente irracional e subitamente mais confiante, de modo que passa a não somente fazer mais séries, incrementando as aulas do dia, como também a acrescentar mais peso nos movimentos mais exigentes, a fim de sentir o bíceps estourando, porque sempre há essa necessidade de compensar tanto tempo parado com uma rápida evolução.

Algo como uma Perestroika do corpo que vai reestruturar esse edifício prestes a desmoronar, transformando-o numa construção mais segura, rija e moderna, afeita aos desafios de uma vida pós-40.

Então me olho no espelho de relance, e isso me impressiona porque é algo que todos fazemos ali. É quase uma obrigação dar essa conferida na perna ou no tórax logo depois de completadas as séries, com a região trabalhada ainda dolorida, um ato de fé muito mais do que qualquer outra coisa. A busca meticulosa por qualquer leve alteração na geografia do corpo, um volume, uma saliência, um ângulo que não estava ali até a noite passada, um trincado no abdômen que é mais fruto da boa vontade.

Essa é a lógica da academia, a de que melhoramos um pouco todo dia, o mantra das aulas de educação física retornando como um disparo na madrugada e surpreendendo o adulto com a atemporalidade dessa obrigação que eu evitava a todo custo na 5ª série: corpo são, mente sã.

Aquelas aulas que eu matava semanalmente com a desculpa de que não me sentia bem, que meu cachorro tinha morrido ou que minha avó estava doente em casa e eu era o único responsável por lhe ministrar os remédios.

E agora estou aqui há dez minutos correndo sem sair do lugar sem que ninguém tenha me forçado a isso. Pior: estou pagando para correr sem sair do lugar. Me sinto mais idiota numa esteira do que em qualquer outra situação, de filas de banco a festas de criança com palhaços com maquiagem borrada, essa é que é a verdade.

A ideia de que avanço para o nada, parado diante de uma TV ligada num canal de desenho japonês enquanto resfolego para chegar a uma linha final que, tal como qualquer linha, é também fictícia, imaginária, e além dela não existe nada, apenas mais um equipamento no qual outra pessoa corre enfiada num universo próprio de música e metas e outros problemas que apenas eventualmente se comunicam com os meus.

De modo geral, porém, tenho gostado da experiência. Contra todas as expectativas, sou um aluno diligente e humilde que observa atentamente os movimentos na academia, os caras fortões com braços de veias esculpidas e meninas com tríceps que equivalem aos meus juntos.

Tento aprender com todos na esperança de que um dia possa voltar a jogar dois tempos de 15 minutos no futebol de salão sem perder os sentidos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...