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A cidade é um ovo


A cidade é um ovo, escuto com frequência desmedida, ao que os mais exagerados acrescentam, em tom ainda mais incisivo: um ovo de codorna, o dedo em riste a advertir o interlocutor ingênuo.

Um ovo pelo que tem de diminuta, claro, e isso sempre me pega, pra usar uma gíria de fabricação mais recente (já sem muito uso, tanto ela quanto a palavra gíria em si), porque no fundo se trata de uma metrópole, a quarta maior do país.

Uma cidade com três milhões de pessoas e mais de uma centena de bairros. Espalhada como um ovo na frigideira, quente como ovo cozido, abafada como ovo na cuscuzeira, mas não exatamente um ovo, no seu sentido figurado, se é que consigo me explicar.

Mas há quem insista: a cidade é um ovo. O que quer dizer, afinal de contas?

É coisa para se investigar, apurar bem antes de falar e repetir, até para encompridar aquela conversa na mesa de bar ou na fila do pão, no cinema ou na praça, quando duas pessoas desconhecidas descobrem amigos comuns e intuem, como numa epifania, que a cidade é um ovo.

Ou seja, o fato de que dois nativos ocasionalmente encontrem elos que, ao fim e ao cabo, pertençam ao mesmo network, ainda que só aparentemente distante, visto que resultado da mesma família de interações, é evento tão sugestivo que acaba por levar a essa conclusão miraculosa.

A cidade é um ovo porque todos de alguma maneira se conhecem? Porque nada se faz às escondidas? Porque o pior dos malfeitos termina revelado?

Porque alguém sempre é próximo de alguém que estudou com o primo da namorada do melhor amigo no terceiro ano C do Geo ou do Batista ou do Santo Inácio?

Ou a cidade é um ovo porque os circuitos culturais e de lazer de uma faixa média dos seus moradores (a classe média, afinal) costumam se manter rigorosamente os mesmos, inclusive quando decidem apostar em novidades?

Porque não há dúvida de que Fortaleza é novidadeira, mas nela as novidades são sempre as mesmas para o mesmo grupo social, isto é, a força do hábito é o motor atrativo de relações interpessoais autorrestritivas.

Até na rebeldia Fortaleza é uma cidade conservadora.

Isso significa que a urbe é um ovo apenas se os limites de quem a vive se estreitam pelo quadrilátero formado por um conjunto de bairros mais ou menos semelhantes. E tudo fora deles pareça com aquele descampado do mundo para onde Simba jamais deve ir, em hipótese alguma, porque lá mora o perigo com “P” maiúsculo.

De modo que as possibilidades de encontro de fato se reduzem aos mesmos espaços a depender da faixa de renda/etária/cor de pele, estratificando as chances de furar a casca do ovo, sempre menor quanto mais limitados são os traçados do indivíduo.

Nesse mundo oval, rico interage com rico, pobre com pobre, remediado se vê às voltas com remediados e por aí vai, com poucos lugares nos quais há interseccionalidade e fluxo.

Na real, então, a sensação de que Fortaleza é uma cidade-ovo não passa do reconhecimento tácito de que no dia a dia os cercadinhos VIPs e os bistrôs de bacanas não convivem com outras modalidades de convívio, seja de que tipo for. E que mesmo a classe média ilustrada se ufana das fronteiras invisíveis que delimitam os espaços pelos quais transita, esses cuja entrada cobra sempre pedágio simbólico, filtrando e selecionando antes de qualquer seleção.

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