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Mãos



Quase fim do ano. Diabo de tempo pra voar, a gente fica entretido, olha os próprios pés, olha as mãos, entra janeiro e começa novembro, uma ligação direta, um gato.

O tempo agora é uma gambiarra, um atalho entre tempos extremos, temos noção de quando começa, quando termina, mas essa noção é cada vez mais diluída, começo e fim misturados, apenas continuidade, fluido, uma reta.

É mais um rito moderno-ancestral que se perde.  

Uma coisa que chamava minha atenção: mãos. Minhas mãos.

O deslocamento de ter mãos e sabê-las usar para escrever, por exemplo, ou desenhar ou fritar um ovo, que seja, isso de ter mãos e fazê-las coincidir com o desejo, isso de ter mãos e olhar pra elas e elas estarem ali, ao comando.

O deslocamento. Tem uma coisa estranha desde sempre. Quando era criança e voltava pra casa com uma caixa e dentro da caixa um videogame, imediatamente pensei: esse objeto tem valor pra mim, mas, se esqueço aqui, no ônibus, num canto, e fico olhando pra ele à distância, como se não fosse meu, esse objeto perde valor, esse objeto desaparece, relativizado.

Como a palavra repetida.

Só lembro que o tempo passa quando vejo minha filha, o cabelo grande, dentes, andando pela casa, esbarrando nos móveis, da altura da mesa, balbuciando e esperneando quando quer qualquer coisa e a gente nega, eu não sabia que a gente aprende tão cedo tanta coisa, olho pra ela e é como se o tempo ali também fosse um salto, janeiro e dezembro congelados, um no outro, qualquer tempo é o mesmo tempo.

O tempo das mãos, o tempo nas mãos, o tempo à mão.

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