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A puta

Os cheiros da avenida, fritura, salgado, carne e sorvete, churrasquinho e algodão.

Tinha chovido, é outubro, quase fim do ano.

Me desviei dos patins em alta velocidade, os meninos saltam a lixeira, um deles cai e fica sentado, sem camisa, fone de ouvido, calça jeans, os outros riem mas logo se calam e voltam a saltar, uma garota voa na direção contrária, vou acompanhando até se perder.

Encontro uma puta. Ela é morena, cabelo liso, preto brilhoso, pouca roupa, os olhos chamejando de algo que sei o que é, mas não pergunto porque também tenho cá e por medo prefiro deixar assim, guardado.

Eu e a puta, embora tenhamos muita matéria comum, passamos um pelo outro sem dizer nada.

A puta para na frente. É bonita. Vinte e um? Vinte e cinco?

Procuro pastel, mas lembro que não como pastel. Tinha parado de comer carne e odeio pastel de queijo.

A puta pede que eu compre um pastel de queijo. Ela adora pastel de queijo, repete.

 A puta sorri. A puta segura minha mão.

A mão da puta não pesa nada, é quase um passarinho morto.

Essa puta é diferente. Chamá-la puta não diz nada. Quero chamá-la pelo nome, ela responde que o nome é feio, prefere puta, digo puta é ofensivo, ela faz um muxoxo, resmunga, morde o pastel, a boca fica oleosa por um segundo antes de ela limpar com o dorso da mão e esfregar depois na saia.

A puta é bonita e eu tenho aqui esse negócio que vou carregando sem saber o que é nem perguntar a ninguém na rua se por acaso alguém poderia ajudar com esse volume estranho.

Me chama do que quiser.

Só se você inventar um nome pra mim.

Posso pensar. 

Que tal Yracema?

Nome de empregada, mas eu gosto, coloca um Y pra ficar mais chique.

Yracema.

A puta fica feliz.

E eu?

Você não precisa de nome, diz, você é esse vento, não precisa, vai passando e quando a gente vê, não vê mais.

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