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Mais perto do mar

É um sábado desses. Apenas o platô, esse patamar ao qual se chega sem saber mais ou menos como se foi parar ali. Mas estamos ali. E agora precisamos andar. Voltar não é uma opção, temos de ir adiante. Ou pros lados. Procurar uma saída. 

Assim é o platô, região de gravidade zero onde flutuamos e os gestos parecem lentos e mesmo o pensamento escorre sem muito o que dizer. É mais fluxo que conteúdo, coisa maquinal e jamais consequente. 

É disso que preciso hoje. Mecânica, peças em locomoção, estruturas contra estruturas, superfícies contra superfícies, física mínima. Uma ciência que prescinda de explicar e se contente em ser. 

Leio um pouco, escrevo, arrisco um aceno à rotina, falo o que me vem à cabeça, penso numa história, imagino outra, quero começar a escrever seja lá o que for, ensaio uma ligação telefônica. A mãe estará em casa? Por onde andará o pai?

E os irmãos? Todos soltos, sozinhos, ilhados. É o grande mal da família: os vínculos frouxos, prestes a se desfazer, jamais essa ligação indissolúvel que sempre admiro na casa dos outros. Paro. Digo pra mim mesmo que chega.

Ninguém precisa de outra história. De mais uma história. Eu preciso, porém, e por isso vou em frente. Porque contar é a terapia. Narrar. Falar do que houve para que não pareça uma sucessão de acasos, gestos perdidos no tempo, coisas sem nexo que acontecem e depois se gastam a ponto de se confundirem com poeira.

Não é poeira. Nada é. Eu realmente estive ali, realmente entrei na água e mergulhei e, quando voltei à tona, já não havia mais nada, não havia ninguém, apenas rastro e dor. Sequer o vestígio da presença, apenas o lance fugidio, essa sensação esquisita de que alguém ou algo esteve ali por breve que tenha sido. 

Hoje sorrio e deixo de lado o que sinto, olho e quero dizer da maneira mais dura e verdadeira. Não me abato. Quero engolir a tristeza, falar e ficar para sentir todos os estragos que produz a própria fala. Como se acompanhasse o progressivo desaparecimento da matéria orgânica. 

Quero testemunhar o fim, tudo que acaba, e depois pedir uma cerveja no bar mais perto do mar.  

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