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L no passeio

Tornei a falar com L, agora noutro contexto, ambos já curados e exaustos de tudo que foi carne e sangue. Ela ainda toda ânsia de mudança, um corpo que vai em frente e procura. E se não acha não se detém no que não tem importância. Para e escreve que deseja tudo diferente.

Uma vida? Um ano? Um livro?

Ela não responde, apenas que precisa dessas coordenadas que não levem ao mesmo lugar, que está na rua enquanto digita e não sabe se conhece essas pessoas, se já as viu em sonho, se são elas mesmas inventadas, criações suas postas em existência por capricho. Se de algum modo ela se descolou e agora flutua sobre as coisas.

Penso na ênfase da palavra, o diferente caído ao final como um pingente muito pesado que faz o pescoço curvar-se e nessa curva perder talvez o que possa ter de certeza. No diferente uma porção de fé e força, tanta energia gasta na procura. Afinal, diferente do quê? E para quem?

Pergunto se ainda tem certezas, e parece que desconverso, que procuro desvios no caminho e tento entrar por essas brechas. Mas não é. 

L diz que poucas, ultimamente preocupa-se só com as horas do dia e nessas horas com o que é capaz de reter entre os dedos, que já não segura nada nas mãos, que agora que está caminhando sente apenas as plantas dos pés.

E dizer plantas é muito apropriado, ela fala, dando pequenas corridinhas para cruzar a avenida movimentada. Porque plantas têm raízes, plantas estão presas, e assim ficam à espera de que alguém as leve a passeio ou as alimente. E se faz sol, banham-se no sol, mas se chove encharcam-se enquanto durar a água.

L agora precisa de que os pés sejam menos plantas e mais como correntes de bicicleta e outros mecanismos metálicos que fazem girar engrenagens com regularidade, impondo ao tempo uma característica que, embora abstrata, acaba por confortar: é fluidez, é passado, é miragem.

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