Pular para o conteúdo principal

Os olhos

Eu tinha a pretensão de escrever sobre o papel dos olhos no meio dessa pandemia, mas isso foi antes de descobrir que o Verissimo já havia feito isso, e feito ao modo do Verissimo, o que significa dizer que eu posso até tentar, desde que esteja certo de que fracassarei.

É esse fracasso antecipado que me conforta e dá segurança para continuar.

Mas, agora que comecei, vejo que não foi uma boa ideia. Porque, uma vez que a palavra instaura a imagem, e o texto do Verissimo faz isso, é impossível dissociá-la dessa ideia de que pertence a alguém.

É como querer se livrar de um cheiro marcante. Simplesmente não dá.

Com essa história dos olhos é a mesma coisa. Um dia, estava no supermercado parado. Olhava a caixa, que me olhava de volta. Ambos esperávamos por algo que não sabíamos o que era. Nesse ponto eu me afastei e levantei a máscara, pronunciando rapidamente as palavras, quase como um delinquente que anuncia um assalto: como eu posso ajudar?

Ela aguardava que eu dissesse apenas se era débito ou crédito.

Foi aí que percebi que fora isso exatamente o que ela havia dito segundos antes, mas sem que eu a entendesse. Não por falha dela, mas minha, já que eu sabia do que se tratava. Faltava algo, porém. Era a boca articulando os sons, transformando-os em sílabas e as sílabas em palavras.

Mais que isso: o movimento da boca sendo boca.

Voltei para casa com uma ideia anotada em papel: falar dos olhos. O tempo se passou, e nada. E ontem li o Verissimo.

Eu recomendo que façam o mesmo. Leiam sempre o Verissimo, que reparou nos olhos e na função que passaram a desempenhar nestes tempos de pandemia e do uso cotidiano das máscaras.

Os olhos sobrecarregados de mensagens.

Os olhos, como ele fala, cheios de todas as expressões que antes o rosto inteiro executava.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d