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Crônica da vacina

 

A Pfizer, muito carente, insistiu enquanto pode. Escreveu emails desesperados nos quais suplicava por uma palavra, qualquer que fosse, mas que o destinatário se dignasse a responder, do contrário quedaria doente sabe-se lá de que moléstia, ela previa.

Mas do outro lado havia um interlocutor insensível para o que ela tivesse a dizer, de maneira que se passaram 30, 40, 50 mensagens, até chegar a 80, quando ela se convenceu de que bastava e deu tudo aquilo por encerrado: havia se cansado, não restava nada, era o fim.

Quando ele finalmente a procurou, muitos meses depois, Pfizer já estava noutra, imunizada daquele vírus que a deixara como que cega para todo o corpo que não fosse o dele. A vida tinha se aberto, e ela agora passava de mão em mão, de braço em braço, no que era feliz, muito feliz.

Com a Janssen foi pior. Jamais se prestou a qualquer resposta, simplesmente desapareceu, e ele sentiu na pele o que era abandono. Disse que viria, mas não veio, anunciou que chegaria, mas não chegou. Fez promessa, alimentou expectativas, deixou que a aguardassem repletos de uma chama de esperança no futuro, apenas para frustrá-los, para ensinar talvez que a vida é assim mesmo, como no poema de Carlos Drummond.

Quando a AstraZeneca apareceu, ninguém estava preparado. Foi como um terremoto, um acontecimento que destroçou barreiras sanitárias e desfez as normas do organismo, dobrando-o em mil pedaços, não deixando pedra sobre pedra.

Cheia de um vigor inconformista, pôs tudo abaixo, entrou no sangue dizendo a quem a procurasse que ou as coisas seriam como queria ou não seriam, expondo desde logo por que a chamavam apenas de Astra no privado.

Porque seu astral se transmutava num segundo? Talvez. Porque se dissesse que sim de manhã, de tarde já mudara de opinião, e ai de quem a acusasse de volubilidade ou inconstância. Era apenas como era: uma vacina contra a mesmice da vida. Que não duvidassem.

Em tudo a AstraZeneca era diferente da Coronavac, de feitio miúdo e fala mansa, que foi chegando e, por timidez, ficou, ganhando não apenas simpatia, mas amor. Um amor que cresceu, cresceu, e hoje se traduz numa realidade: é mais presente na vida de qualquer um do que todas as demais.

No começo, porém, chegou a esnobá-la, a dizer que, houvesse uma alternativa, a trocaria por outra ou outro, porque com eles não havia distinção por gênero, amavam-se apenas com base nos índices de eficácia e proteção contra os riscos à saúde.

Corona ouvia tudo calada, numa sabedoria milenar que herdara desde o nascimento, numa província distante de um país muito antigo. Sabia que sua hora chegaria, que venceria não pela rapidez ou pela insistência, mas porque era onipresente, acudia a quem a procurasse, atendia a quem necessitasse, servia-se do desejo e desejava servir.

Amiga, esposa, marido, amante, família, conhecido, despachante, garçom, garçonete, motorista. Por todo lado estava a Corona banqueteando-se com quem lhe apetecia, entregando-se mesmo a quem se havia encantado com uma tal de Cloroquina, uma falsa curandeira que prometia trazer o amor em 24 horas, mas só produzia taquicardia.

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