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Um encontro


A mulher de cabelo descolorido o encara mais uma vez. Sheila, ela mentiria mais tarde. Usa shortinho curto e top rosa. Na verdade, mal chega a erguer a mão.

Sai na frente. Logo atrás segue o homem. Magro, veste calça bem engomada e camisa passada por dentro, uns sapatos engraxados marrons que lhe dão mais cinco anos além dos 43 que tem. Carrega uma capanga sob o braço.

Os dois se afastam da praça, àquela hora ruidosa. Entram numa rua movimentada, barracas de milho e churrasco e produtos importados, quinquilharias chinesas trazidas aos milhares e distribuídas no centro.

Ela então pede que se aproxime. Baixinho, pergunta se ele prefere pagar o quarto ou se poderiam ir a um indicado por ela.

O homem assente. Andam mais dois quarteirões até chegar ao edifício de fachada espremida entre lojas de estofados. Um prédio que já foi shopping e ótica.

O quarto tem cheiro de Leite de Rosas e detergente. A mobília se constitui de penteadeira e cama.  

Finalmente a olha sob a luz amarela que pende do teto. É velha, talvez mais que ele. Remoçada pela pintura, no entanto, passaria como filha.

Ela faz menção de despir-se. O homem a interrompe. Diz que não é o que está pensando.

A mulher arqueia as sobrancelhas finas sobre olhos rasgados. Está sobressaltada.

Da capanga, Argemiro faz saltar uma foto. A mulher se aproxima. Depois se afasta e senta-se na beirada da cama.

Quer lhe perguntar se ele ainda está vivo, se a foto é recente, se Argemiro se chama Argemiro ou se tem outro nome antigo, um que talvez tenha se perdido noutro passado, noutra cidade.

“Posso sentar aí?”, pergunta apontando o lugar ao lado na cama. Ela balança a cabeça afirmativamente.

Quando deixam o quarto, está escuro, e nas esquinas do Centro as barracas de churrasco estão repletas. Música alta por toda parte. Voltam à praça, que se esvaziara no intervalo.

Despedem-se com um aceno. Sheila retém a foto no peito. Argemiro sai no mesmo passo calmo com que a seguira horas antes.

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