A esta altura, todos já devem ter se deparado com a expressão “fiscal de comorbidade”, que designa aqueles cuja tarefa, atribuída por si mesmo, é averiguar se tal ou qual pessoal é autenticamente detentora de algum problema de saúde, crônico ou não, de modo que possa se beneficiar dessa condição para se vacinar antes dos demais.
O fiscal da comorbidade é uma figura sumamente atual e adaptada ao Brasil bolsonarista de 2021, um país onde a desconfiança é a linguagem comum e a suspeição, uma prática corriqueira. Nele, o presidente inventa suas próprias estatísticas, desmentidas no dia seguinte, quando o estrago já está amplamente consumado.
Entre nós se desconfia de tudo, da ciência e das instituições que produzem conhecimento, dos pesquisadores e da medicina, da validade das provas e do que dizem seus examinadores. Vivemos o déficit da boa-fé alheia, da palavra como fiadora e do benefício da dúvida.
Partimos do princípio de que tentamos tirar proveito de tudo a todo momento, de que há uma conspiração em voga sendo tramada no Projac ou no DCE de alguma universidade pública com a finalidade de cercear os direitos do cidadão, esse alecrim dourado em vias de extinção cuja vida é atormentada por comunistas, gayzistas, abortistas e outros “istas” igualmente fantasiosos.
Daí a duvidar do que asseguram os outros acerca da própria saúde é um passo. A suspeita não é apenas delirante, é também contagiante, um “vírus que se pega com mil fantasias”. A credulidade incrédula é o novo credo dessa religião cujo deus é um o fake mito.
Afinal, quem garante que o fulano, que fuma e até bebe nos fins de semana e era visto nas festas todo alegre, tem algum problema que o faz pertencer àquela faixa de brasileiros aptos a avançarem na fila da imunização, preterindo a minha dose escorado numa possível fraude sanitária?
E a fulana, que nunca vi mancar de uma perna ou reclamar de qualquer enxaqueca, e agora a bonita aparece toda serelepe nas redes sociais alegando uma comorbidade, vê se pode, feliz depois da primeira agulhada, enquanto rouba a vacina de alguém.
É esse tipo de estupidez que se prodigalizou no Brasil, exatamente porque uma das tarefas desse negacionismo é corroer noções e conceitos comuns, fazer apodrecerem consensos mínimos, precarizar qualquer hipótese de uma coletividade.
O fiscal da comorbidade alheia é um cupim social. Conspiracionista por excelência, prospera nas redes, vasculhando a e-vida de outrem em procura de indícios que coloquem em falso a narrativa da alegada enfermidade jamais declarada publicamente, porque, além de doente, temos todos de propagandear a doença para que não restem dúvidas.
Para ele, se tudo é versão e versão é opinião, cada um tem direito a cultivar suas próprias verdades e realidades. De maneira que é possível que o indivíduo acabe por inventar também suas comorbidades afins, posto que tudo é falseado de antemão e nada se sustenta.
O fiscal da comorbidade é um legítimo subproduto do nosso tempo, uma cria da era da desconfiança e da falência da autoridade do conhecimento sobre a banalidade, uma vulgarização do laço de reciprocidade que se estabelece entre as pessoas, base sobre a qual se constrói essa coisa frágil que é a civilidade.
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