Conversei com H longamente no último fim de
semana. Parecia mais velho, não exatamente feio, mas os cabelos mais brancos e
uns quilos mais magro. H, eu lhe disse, o que ainda há para ser feito?
Calado feito jagunço sob a luz baça da mesa
do café, os óculos retangulares, as lentes muito sujas, as mãos postas como se em reza. Inspecionei ao redor: casais velhos e moços, apenas casais. Entretidos
com braços e pernas, casais e suas crianças, casais e suas mucamas
de avental branco. Casais aristocráticos como se ainda
no século XIX. Casais indiferentes, casais mantidos à força de algum elo comercial. Casais como sócios numa start-up. Casais como ex-amigos, como parceiros de buraco, como recém-casados. Casais como espécimes raras de um mundo que não existe mais. Casais de toda sorte.
O café esfriou. Perguntei a H se queria o biscoito que acompanha a bebida. Como dissesse não, estiquei o braço e comi. Tinha um livro que pegara sem grande interesse da estante e que acabaria devolvendo noutra parte da loja, esquecido sobre a prateleira quando pareceu se interessar por uma história em quadrinhos. Qual livro?
O café esfriou. Perguntei a H se queria o biscoito que acompanha a bebida. Como dissesse não, estiquei o braço e comi. Tinha um livro que pegara sem grande interesse da estante e que acabaria devolvendo noutra parte da loja, esquecido sobre a prateleira quando pareceu se interessar por uma história em quadrinhos. Qual livro?
Tento lembrar. Richard Flanagan? Acho que
não. Pergunto a H se quer mais alguma coisa, ele balança a cabeça
negativamente. Está satisfeito, afinal já é hora de ir. Digo que fique mais um
pouco, ele faz um gesto de amuo, como se fingisse uma zanga por razão que vai
além do pedido e chega a outro ponto, chega a uma nuvem de palavras que zumbe
sobre sua cabeça e abaixo da qual ele patina pra lá e pra cá.
Que letra bonita, H, falo para animar. Está
escrevendo no guardanapo o nome da garçonete, Ivone. Anota várias vezes, Ivone,
Ivone, Ivone. É o nome da minha tia, ele diz. Um nome
antigo, talvez apenas um pouco antipático, e a garçonete ri. Ivone é minha avó,
mas ela já morreu, responde a garota, que tem os cabelos presos em coque e uma
expressão de esforçada alegria.
Todos temos uma avó que morreu. Ou que
morrerá, dá no mesmo.
Após algum tempo, H vai embora de mãos
vazias. É a primeira vez que o vejo sair de uma livraria sem levar nada. Dias
depois, nos falamos pelo telefone. Ele pergunta se lembro da garçonete do café,
eu digo que sim. Ivone? Confirmo com um grunhido. Ele fica em silêncio, então se
despede prometendo me contar a história da avó.
Ela era uma bruxa, uma mulher muito forte,
ligada à natureza, previa chuvas e adivinhava o sexo dos bebês. Também tinha visões.
No meio da tarde, virava-se para uma parede e falava com alguém, um tio que já
havia morrido, outro que tinha desaparecido havia décadas depois de viajar a
Manaus durante o ciclo da borracha.
Por que está me dizendo isso, H?
Ivone me lembrou minha avó. O coque, talvez. Não
sei.
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