Ivone acordava assustada no meio da noite,
dizia ter visto o pai chamando na porta. Depois deitava, falava sobre a morte,
que não a colocassem no caixão ainda viva. Tinha medo de escuro, de bater e
ninguém abrir, tinha medo de que alguém a sufocasse enquanto dormia, medo de
que a mãe do papai a convidasse para uma volta e ela não tornasse.
Os netos riam, ainda crianças. Não se davam conta
de que Ivone não delirava, que tinha razão nas advertências. Ela ralhava,
dizia: vocês vão ver. Um dia estarei aqui e, no dia seguinte, não estarei mais.
E repetia uma frase, sempre a mesma frase apocalíptica que anunciava sabe-se lá
que pragas: quando a roda grande entrar na roda pequena, será a hora certa.
Que hora? Que roda? E caíam na gargalhada.
Numa quinta-feira de abril de 2008, um dos
filhos de Ivone voltava do trabalho para casa. Dirigia um Fusca. Distraiu-se
com o telefone e bateu o carro contra uma árvore à beira da estrada. Desceu com
vida, contaram testemunhas. Depois se sentou no meio-fio, encostou a cabeça no
chão e morreu.
No curso dos dias, ninguém teve coragem de
contar pra Ivone que o filho mais querido morrera. Nem a caçula Maria, tampouco
o mais velho, Antonio. Esperavam que outra pessoa o fizesse. Mas quem? Damião,
outro dos filhos, estava viajando. E Regina dera para brigar com o marido dia
sim, dia sim. Não tinha condições.
O tempo passou. Um mês, depois outro. Uma
tarde, pouco antes do café, Ivone se ergueu da cadeira onde se sentava para
olhar o movimento da rua. Falava que era a sua televisão real, personagens de carne e osso, gente com a Bíblia debaixo do braço, bêbados, casais abraçados, crianças brincando.
No seu passo atravessado, cruzou a sala e
acomodou o quadril rente ao batente da cozinha. Puxou o vestido de Maria.
O Luís morreu.
Maria ficou lívida.
Mãe, quem lhe disse isso?
Em seguida Ivone pegou o terço de contas de madeira que ganhara de presente no aniversário de 90 anos. Sentou na rede e começou a rezar.
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