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Intuição da água

A sensação de que todos vivem mas a vida mesmo acontece noutro canto, que não se pode apanhá-la, o vexame de procurar e não achar, a suspeita de que caminhamos na direção errada, a intuição da água, a dúvida sobre o número certo de colheres de açúcar no café, o abismo de todas as horas do dia à disposição, o marasmo de semanas inteiras pela frente, a aflição de já contar 37 mas ainda faltar tanto, a tristeza de estar a meio caminho de sabe-se deus o quê.

Ia dizendo tudo como pinceladas num quadro. Sentado, passava de meio-dia. No caderno as tarefas que anotara para a terça: nenhuma cumprida até agora. Todas por fazer. Se não tinha tempo, desejava tempo. Se tinha, desejava não tê-lo tão fartamente.  

E ainda restava muito, ainda tão distante de tudo.

Leu em algum lugar que Faulkner escreveu para se vingar de algo. Um livro como uma pedra atirada contra a vidraça. É preciso ter ódio, e ódio ele não tinha ou tinha pouco, quase nada que servisse de fermento para algo que atravessaria uma centena de páginas.

Só tinha o bastante pra consumo próprio. 

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