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Brasil para colorir

Fiquei pensando nessa febre dos livros de pintar, os Bobbie Goods, brochuras terapêuticas que lideram rankings de vendas em eventos literários, os primeiros depois daquela pesquisa cujos resultados mostraram que o Brasil é majoritariamente um país de não leitores.

Ou seja, somos mais como uma sociedade para colorir do que para ler, de preencher do que de entender, de repetir maquinalmente o gesto do que de suspender mecanismos rotinizados.

Mais de contornar os problemas do que de deixar de lado esses “good feelings”, de vagarosamente ir ordenando tudo conforme uma paleta selecionada ao gosto de quem manuseia esse número finito de cores do que de aceitar que a realidade é informe e multicor.

Enfim, talvez haja nessa mania uma chave qualquer para entender sabe-se lá que problemas atávicos, que retornam sempre pela porta dos fundos e aos quais respondemos com esses expedientes.

Afinal, o que significa essa opção pela pintura em desfavor da palavra, do andamento irrefletido da mão no lugar da lenta decifração de frases e por aí vai?

Pensei eu mesmo experimentar o gosto de concluir cada página com as cores que eu escolhesse, de ir deixando para trás paisagens infantis e, ao final, sentir que havia encerrado uma tarefa, ao cabo da qual agora eu podia passar a outro estágio, a outro patamar, sem tanto gasto de energia.

E quem sabe nisso não houvesse a razão para o sucesso dos volumes populares, isto é, os Bobbie Goods como um divertimento descompromissado, de baixa ou nenhuma exigência, que obriga a todos a parar por uma fração de tempo.

Uma parada obrigatória dos automatismos, ou a substituição de um automatismo digital por outro, analógico e com menos contraindicações, uma brecha dos tempos antigos no nosso tempo de agora, um retorno ao passado em meio ao presentismo extremo do instante.

Seria isso, então?

Os Bobbie Goods, com seu tempo e sua respiração, seu ritmo e sua gramática, seriam a resposta para frear esse frenesi do hoje, esse galope incessante cujo alvoroço se amplifica mediante uso cada vez mais largo das tecnologias?

Os caderninhos diligentemente pintados como o outro lado de uma época dominada por IAs e bots de resposta automática, de repetição e apagamento de toda autoria, de combinação entre real e fictício, de verdadeiro e falso?

Mais que qualquer leitura, de que não se teria garantia de autenticidade, os Bobbie Goods, sim, seriam índices de veridicção, assegurando a persistência do humano ameaçado por um regime pós-humanista?

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