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A festa do barco

 

Quarenta anos é o tempo do navio encalhado na orla, o Mara Hope, quatro décadas de corrosão ininterrupta, de marés engolindo aos poucos os braços e pernas da embarcação cuja história a levou a se prender a um banco de areia depois de uma tentativa fracassada de resgaste.

Uma noite, ou durante o dia, não sei, os cabos se desataram, talvez os tenham cortado, e então o navio se pôs em movimento, como se se cansasse do destino que o aguardava, mas logo deu com os burros n’água.

O barco extraviado hoje incorporado à paisagem da cidade quase tricentenária, instituindo-se como um marco fundacional do olhar, concorrente da ponte (velha e nova, que também é velha), do farol e do calçadão, todos pertencentes a uma memorabilia urbana e a uma iconografia sem a qual a praia, sempre sob aterro, seria irreconhecível após tantas intervenções desarmoniosas.

Mas o que se vê na carcaça destroçada do animal metálico reduzido ao oco pela ação devoradora do sal e dos anos? Talvez o símbolo da transição, dessa perda irrevogável, de que o mais concreto se desfaz, mesmo sem afundar.

Ou a sugestão de que o acaso que o fez aportar em marasmo se apresente como um resumo das trajetórias de uma narrativa oficial na qual o forasteiro se inscreve frequentemente como elemento de adoração desde a sua chegada, tal como no mito de Alencar.

Sempre tive com o Mara Hope uma relação dual, não gostava de vê-lo mas sempre o procurava com a vista, como a um bicho que causasse asco e admiração ao mesmo tempo, um portal que plasmasse futuro e passado diante do qual eu me perguntasse se valeria a pena buscá-lo – ou se ganharia mais perdendo-o no horizonte.

Quando criança, intrigava-me que fosse ficando, como essas coisas que esquecemos no quintal, móveis velhos e danificados para os quais não encontramos mais destinação e que por isso se deixam estar num canto sem reclamarem, atentos ao desenrolar dos dias, sem o peso de interferirem no andamento da história, testemunhas natimortas.

Assim é o bicho tragado pela areia, imóvel e posto numa fixidez documental, como a estender o dedo para a cidade, como a advertir os seus moradores de que cuidassem da paisagem e da vida, do contrário acabariam como ele.

Ironia que seja ele/ela a se converter em exemplar da resistência à voragem imobiliária, a mesma que demole e reconstrói sob o signo do bom gosto, tendo como métrica a estética cafona do balneário.

Logo ele/ela, despojado já de si porque foi sendo roído pela mordida das águas, uma estátua salgada e involuntária em cuja legenda se lê qualquer frase num idioma estranho, nomes de pessoas conduzidas por milagre até ali, ao dorso ferruginoso desse monstro antediluviano.

O Mara Hope, quem diria, chega ao seu aniversário de imobilidade flutuante constrangido por ostentar sem querer o título de cartão-postal de Nossa Senhora de Assunção.

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