Pular para o conteúdo principal

Não, não leia

 

Comecei a desconfiar dessa pororoca de títulos no imperativo, a exemplo de não olhe pra cima, não fale, não diga seu nome, não, não olhe, não se mexa, enfim, uma série de sentenças cujo papel é estabelecer um veto a quem quer que leia/veja/assista um produto que se destina exatamente a ser lido/visto/assistido.

De modo que, ao menos em princípio, trata-se de um contrassenso, um paradoxo: instituir como pacto o princípio da não leitura com uma audiência escapadiça.

Esse impeditivo é apenas uma isca para o jogo, evidentemente, o gesto que deflagra um “faz-de-conta”, capturando essa atenção difusa que circula descompromissada entre os itens de uma oferta inesgotável nas prateleiras das plataformas.

Talvez haja nele mais que apenas artifício. Mas o quê? Tenho apenas suspeitas, hipóteses mal formuladas que não explicam de todo, no entanto ajudam, eu espero – logo eu, que nunca resisto à isca da vedação, que sempre olho pra cima, digo o nome e me mexo quando a sugestão é o contrário.

E quem sabe esteja aí a chave da leitura, qual seja, o imperativo é tão somente retórico, ferramenta situada num esquema no qual o destinatário da mensagem interpreta que a elocução não pretende de fato impedi-lo de nada, mas produzir uma chispa de curiosidade – o que há do outro lado, acima ou abaixo, às costas ou à frente?

É possível, no entanto, que o imperativo nessas obras tenha ainda uma outra função, que é a de endereçar o “Mal” (com maiúscula mesmo, porque essencializado) a um campo presumido do real, isto é, ele existe, sim, como entidade absolutizada que exorbita o mundo físico.

O mal é um visitante, uma força cuja presença se sente porque está em desacordo com as regras do mundo conhecido – a criatura planando entre as nuvens no filme do Jordan Peele, por exemplo, extraterrena e imiscível.

Logo, a ameaça é de outra natureza: vaga, impalpável, insidiosa, além-mundo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...