Começo por essa arqueologia numérica, “299”, algarismo cuja fama se justifica apenas por estar perto do vizinho mais famoso, como um desses ex-BBBs que depois precisam se esforçar para serem lembrados pelo público.
A data é marcante mais pelo que falta – uma unidade para chegar aos “300”, esse, sim, imponente e convidativo à reflexão – do que pelo que representa por si, como se nisso acabasse também por produzir um retrato mais fiel da metrópole à beira do tricentenário.
Na cidade cujo lema informal é “tem, mas tá faltando”, a frase (que traduz o 299 à perfeição, talvez) poderia muito bem substituir “fortitudine” no brasão oficial.
Empregado por todos os prefeitos desde a redemocratização (à exceção do visionário Juraci Magalhães, que tinha seu próprio bordão), o símbolo da municipalidade contrasta um forte com dois ramos de planta, um de algodão e outro de fumo. Os galhos verdes, ainda em florescência, erguendo-se contra o céu azul, em alusão ao que é sempre projeto.
Eis outra característica decalcada da capital cearense: está de olho no firmamento, na risca do mar, futurando sonho, assuntando com um porvir que às vezes nunca chega, é apenas aspiração e só.
Cidade 2000, Praia do Futuro, Leste-Oeste – mais que referenciais geográficos, são marcos de movimento em um mapa citadino que tenta alargar os horizontes a golpe de gestos de nomeação, como se o ato em si de batismo atestasse por si a trajetória auspiciosa, para a qual fatalmente a urbanidade alencarina caminharia.
Nessa “quase-cidade” ou “cidade-quase”, ter é sempre falta. E falta é a contraparte de uma desigualdade que distribui desigualmente as possibilidades da prosperidade.
Nela, perto nunca é de fato estar lá, como sugere sua formação, que estabelece um jogo de gato e rato entre periferia e centro, uma valsa de distanciamento e aproximações que busca preservar distâncias sociais – a terra do cercadinho VIP, dos limites e das fronteiras invisíveis.
Nisso o “299” é exemplar, porque calha de fazer pensar no 300 logo de cara, jamais no 299 em si mesmo, que parece sem valor, esquecido pelos cantos, destituído de graça.
Mas eu gosto dessas coisas sem valor, simpatizo com a beleza sem ênfase do número manco, da falha estética e de uma matemática que teve a infelicidade de estar mal-acabada, até mal acompanhada, em vias de – sem nunca realmente chegar.
Como obra inconclusa – um aquário, uma ponte, uma reforma de biblioteca, um museu largado à própria sorte, um farol tombando, mas não tombado –, é até romântica a ideia de quase como “cidade-canteiro”, em progresso.
Nunca pronta, Fortaleza segue permanentemente em deriva, um esboço daquilo que se imaginava que seria quando estivesse encerrada (aterrada?). Que planos acalentava aos 200 anos e aos 250? Não se sabe.
Quando o futuro da praia fosse finalmente presente e os anos dois mil, uma página de calendário.
Essa é uma imagem que até lhe cai bem: o aldeamento, esses núcleos que se aglutinam em torno das concentrações no curso do tempo, se favelizam e depois são escorraçados por uma elite que se atrasa, mas não tarda, como escreveu Jáder de Carvalho no que considero como uma súmula do espírito local: o romance “Aldeota”.
É 299, não 300. Tem, mas tá faltando. Entre um número e outro, contudo, no vão mesmo do inexistente, é aí que Fortaleza pode existir como projeto coletivo, e não como uma ilha de condomínios de nomes afrancesados cercada por um mar de periferia ao léu.
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