Pensei em começar falando dos espigões privê e da estética plástico-temperada, da mistura do granfinismo com o mau gosto bem dosados, do creme de leite afogando o camarão que substituiu a peixada em água grande.
Mas desisti no meio do caminho, parte pelo cansaço, parte pelo receio de ceder ao saudosismo mais chinfrim, parte porque não teria nada de novo a dizer que já não tenha dito antes sobre o mesmo pedaço de chão da cidade.
Um pedaço disputado, remodelado e precificado à exaustão, reimaginado, demarcado e leiloado, derrubado e erguido em tempo recorde, nesse escambo de velharias. Uma usina de autoimagem cujas caldeiras nunca se apagam.
A metrópole como essa página em branco na qual os gestores escrevem o que lhes dá na telha, e ninguém se interessa se o fazem por bem ou apenas porque inventam sempre de rabiscar uma marca.
Ainda que essa “marca”, o grafismo torto que é também uma fratura, seja a do malfeito com ares de benfeitoria, do improviso com pretensão de planejado.
Pensei que, indo por esse caminho já batido, insistiria numa ladainha não apenas pessoal, mas coletiva, uma vez que o refrão lamentoso é o mesmo aonde vou. Os mesmos tópicos e queixumes repetidos sobre mazelas em torno das mesmíssimas questões da cearensidade descapitalizada: a desmemória, o desaprumo, o desajeito.
Mas, enquanto não decidia se mudava de rumo ou se seguia em frente, fui dando tratos ao clássico tema da falta de tema. Entre uma xícara de café e outra, contornava o nervo mais ou menos como fazemos quando coçamos nos arredores da ferida, dissuadidos do desejo de tocar diretamente no ponto de onde irradia o incômodo.
Eu sabia que havia algo, uma nódoa talvez mais importante em toda essa história. Mas de que história afinal estava falando? Da falta crônica? Do território como um tecido cicratricial sobre o qual se sobrepõem as muitas peles da cidade, que se acumulam feito as vestes transmitidas como herança sempre entre as mesmas famílias?
Ou dessa sobrecapa modernosa que lhe vão fazendo cair nos ombros, uma metrópole acarpetada e acondicionada, produzida com esse traço de exclusivismo brejeiro para as condições de habitabilidade de uma faixa minoritaríssima cujas reservas financeiras lhe permitem dirigir o fluxo de crescimento, enquanto se estapeiam nos fins de semana nas áreas VIPs dos restaurantes da moda?
Eu sabia, mas não sabia. Mesmo o assombro diante da imobilidade não me parecia lá grande coisa como assunto do qual eventualmente poderia extrair algo. De modo que continuei criando, para deleite próprio, jogos de armar com palavras mais ou menos gastas, numa pescaria íntima de que não resulta nada de grande valia.
Até pensei em terminar falando de como cada megacondomínio lembra um pouco o mausoléu, essa construção em suspenso que desafia a imaginação de menino, um braço concretado que se inclina sem sustentação aparente. Lá dentro talvez a alma penada do político-ditador que, todas as manhãs, desce pela avenida e vai à praia não para um mergulho, mas para apreciar a vista do conjunto de varandas espelhadas dos arranha-céus.
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