Pular para o conteúdo principal

A sua pior versão



Ouço com frequência a frase encorajadora “seja a sua melhor versão”, de modo a sugerir que o ouvinte se apresente com uma roupagem mais interessante, performando em chave estética suas ambições existenciais e profissionais.

Uma versão não substantivamente diferente, é verdade, mas em aparência mais atraente do que a versão inferior, numa operação que é mais de customização de personalidade do que de autoaprendizado ou qualquer modalidade que requeira maturação.

E é isso, de fato, que é mais curioso nessa história: que tenha prosperado a crença, ainda que limitada a certos discursos gerenciais, em que possa haver edições distintas de si mesmo, como um aplicativo que fosse gradualmente aprimorado e lançado para a venda, substituindo o modelo anterior, que logo também estará defasado e predisposto ao descarte, inservível para o que vem pela frente.

Uma obsolescência programada do próprio eu, feito de material volátil, fluido e barateado. Num dia, molda-se a tal ou qual novidade, turbinado por atributos que lhe garantem pleno funcionamento num mercado cujo progresso jamais se interrompe, tornando-se uma marca de permanente distinção – a sua melhor versão.

Ser essa versão recauchutada, nesse sentido, é estar continuamente mergulhado numa dinâmica de produção, tal como um iPhone 14, 15 ou por aí vai. Sou o melhor de mim porque faço uma modelagem das minhas expectativas e das minhas potencialidades em atendimento a demandas alheias.

Exatamente porque o horizonte de aperfeiçoamento do maquinário digital também se aplica ao humano, corremos a ostentar por todo o mundo a melhor versão de nós mesmos. A captura da autoimagem tem, então, o objetivo expresso de projetar o novo “self” recém-saído de fábrica por meio do jorro de informação gratuita nas redes.

A melhor versão de si mesmo carece sempre de que seja posta a consumo por uma audiência que também procura acionar na própria subjetividade o dispositivo de melhoria. Numa “gamificação” do envelhecimento, acumulamos pontos à medida que nos revelamos superiores em escala e qualidade ao “eu” do dia anterior. Superação é a meta.

Esse jogo, no entanto, embute naturalmente o seu contrário, ou seja, a pior versão, essa com que a gente desfila no dia a dia, mesquinha e desatenta, fria e vaidosa, mal-humorada e pronta a embates apequenados, tudo parte do caldo de miserabilidade cotidiano que evitamos exibir a qualquer tempo.

Afinal, ninguém sai pelas ruas aconselhando aos desavisados que “sejam a sua pior versão”, numa linguagem de anti-coach e revolucionariamente desmotivacional. Como não estamos mais abertos ao poder desse efeito de choque, fica pressuposto que o pior é sempre a versão presente, a atual, a real, engajando o “usuário” (um conceito mais adequado que o de cidadão ou indivíduo) na busca incansável de uma nova “skin” social, mais positiva e sem arestas, mais feliz e luminosa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d