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A coisa da idade



Tenho agonia, não sei se a palavra é essa, a quem se refere à própria idade assim: 4.0, 3.3, 5.0, como se falasse do modelo de um carro, de sua potência ou ano, e nunca da idade, numa manobra cujo sentido eu não entendo, já que o ponto entre os dois números não elimina o fato de que se tem 40 ou 33 ou 50 anos.

Me pergunto se eu mesmo um dia direi de minha idade: 5.4, estabelecendo esse intervalo, uma espécie de suspense depois quebrado, de modo a tentar sabotar ou trapacear, fazendo o ouvinte se confundir a respeito de qual idade realmente eu tenho.

Mas duvido que essa manobra seja bem-sucedida, afinal quem, ao ouvir 3.8, entende 24 anos e não 38 anos? Isso mesmo, 38, a dois de chegar aos 40, sem problema, mas me parece que não para quem atinge esse patamar, tais como outros, sempre depois dos 30, porque interpor esse ponto entre números é cacoete de quem já passou dessa casa e não de quem tem menos de 30 anos.

Dificilmente se ouve de alguém: tenho 2.5, porque ter 25 anos é por si motivo de orgulho para quem tem 25, depois é que se descobre que ter menos idade é fator contingencial, que logo passa, não atestando mais ou menos inteligência, apenas que se chegou depois na fila de quem se encaminha para o encerramento das atividades sobre a Terra.

Mesmo assim, considerando o estratagema típico de quarentões ou trintões ressabiados e entendendo que nem todo mundo lida com a própria idade da mesma maneira, tenho certa vergonha alheia de ouvir um adulto falar dessa forma, feito um adolescente que enrubesce: 4.2.

Que droga de ponto é essa? Sou capaz de entender que tem 42 anos sem a necessidade de dourar a pílula. Mais que isso, compreendo até mesmo a inconveniência que é muitas vezes querer-se saber a idade de outra pessoa, coisa que evito perguntar, salvo se para efeito profissional, como numa entrevista e a idade do entrevistado é de vital importância para os dados da reportagem.

Mas, afora isso, abomino o 3.7 ou 5.9 na sua tentativa infantil de suavizar o peso que tem pronunciar sílaba a sílaba: trinta e sete, cinquenta e nove.

O que me leva a pensar que talvez o problema não esteja exatamente com o número. O número está dado, é um fato, não se nega o passar das folhas do calendário, tampouco os cabelos brancos ou as rugas.

O problema mesmo é com a palavra. Ouvir-se dizer, confessar a si mesmo: tenho quarenta anos. Cinquenta e seis. Sessenta e sete. Trinta e nove. À medida que o tempo passa, mais demorado fica dizer a própria idade.

Há um contraste com a brevidade do vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e nove e o pior de todos, o vinte e um, quase como um gesto descomprometido, uma declaração de jovialidade desimportante, um sopro de duas sílabas.

O 4.6, desse modo, é uma tentativa de burlar as regras e voltar novamente a falar com desprendimento, sem peso, num jato: 5.1. Cincopontoum. É prático, quase como uma operação matemática, ou modelo de carro, que, quanto maior, mais força tem. Um modo de inverter a perda de potência da juventude compensando com o maquinário automobilístico.

Não duvido, portanto, que isso tenha começado com homens e depois se estendido a mulheres, que às vezes calham de adotar o subterfúgio. Na sua natureza, porém, é coisa tipicamente masculina passar-se como novo e vigoroso quando já não se é mais.

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