Por que terminar aqui?, por que começar?
Seis meses atrás, num 17 de março, entrava em modo pandêmico, ou seja, sob uma conformação tal de sentimentos adaptados a um porvir duvidoso diante do qual eu me sentia à vontade como a personagem em face da extinção naquele filme do planeta azul.
E agora estamos aqui, sem saber ao certo se o pior já passou. Eu costumo perguntar a quem presumo que tenha a resposta: o pior já passou? Ninguém pode assegurar que sim, tampouco devemos esperar termos uma certeza inabalável antes de voltarmos a sair de casa, certo? Pelo menos é isso que tenho visto em fotos e vídeos de amigos. Sim, o pior passou, mas sem ter passado de fato, e dane-se que não tenha passado ainda.
Lembro do tom jocoso do primeiro relato do diário da quarentena, uma piada com aquela situação embaraçosa e ao mesmo tempo excitante que é a suspensão da regra e das normas sem garantia de retorno. Num dia, estava no trabalho. Noutro, em casa, como ainda estou.
Nada do que previ aconteceu mesmo, os monstros não apareceram, não fui vítima de uma conspiração de extraterrestres que assaltam minha residência à meia-noite, os vizinhos não puseram o prédio abaixo.
Mas houve acidentes, sim, sobretudo familiares, certas inquietações que se avolumaram e ganharam forma no terceiro mês de reclusão, sentimentos relacionados ao pai e à mãe, mas principalmente ao pai, numa revisão total e algo impiedosa com ele e comigo nesses meus 40 anos de vida e nos 60 dele.
De modo que, em algum instante, desejei chorar, mas fui incapaz. Estava desassossegado, precisava escrever mas não conseguia, esses canais haviam se fechado como tubulações de esgoto entupidas depois de muito uso. A linguagem se ossificara, nada mais era flexível, tudo rígido como um corpo sem uso.
E daí os dias se passaram, me reconciliei com o meu pai, aprendi o valor de sabe-se deus o quê, mas sinto que aprendi algo – um aprendizado custoso, difícil mesmo, algo como se cavasse fundo para descobrir que não havia nada lá, e essa era a lição, digamos assim. Não tinha nada e não me deviam nada, o pai a mim nem eu a ele, de maneira que essas queixas poderiam continuar, mas sem a carga que haviam assumido durante a quarentena.
Falo sem referências porque, acima de tudo, não quero me colocar nessa posição de quem passa a relatar intimidades domésticas e familiares, tenho a exata noção de que, se o fizesse, não seria aqui, nem agora, talvez nunca.
Tudo que trago comigo é pacificado, harmonizado, mesmo os demônios estão cá no seu canto fazendo suas danças esquisitas se me demoro muito a observá-los, mas como já os conheço, não me assustam tanto. Apenas olho e penso: são vocês aí de novo. Dancem mais um pouco.
Então foi isso que vi acontecer nesses meses de pandemia, ou quase isso, porque, embora pareça que os fatos se desenrolem separadamente, tudo é parte de tudo, e eu não estava parando nada do que fazia para pensar um pouco naqueles acontecimentos de1994, entendem? Eu fazia tudo enquanto lavava roupa e ajudava com leituras e escrevia para o jornal e tinha ideias para um livro que depois jogava fora e assim por diante.
E agora estou aqui, bem aqui, neste ponto além do qual a pandemia não parece mais assustar ninguém e no qual eu me pergunto como me lembrarei do ano de 2020.
Vocês têm ideia de como se lembrarão deste ano?
Não ano que vem, mas daqui a 10 anos, 15 anos.
Eu não sei, suponho que vocês também não, é possível que boa parte seja de boas lembranças, o que me parece uma ideia extravagante em princípio, mas, se penso nela com mais vagar, talvez não seja tanto assim.
E, como a pandemia segue e eu continuo em casa a trabalho, pelo menos até hoje, resisto a terminar bem aqui, agora, porque tenho essa compulsão de anotar cada pequena modificação que se processou no caminho, cada acontecimento destes tempos que passou quase que num sopro.
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