Que fazer na quarentena? A dúvida
incomodava, não apenas porque escancarava a condição privilegiada de quem se
permite elencar atividades e distrações num momento de pandemia, mas também
porque de fato carregava um sentido honesto: que fazer? Eu não sabia.
Apesar das dificuldades, e
cansado de ler jornais e ver TV com imagens de italianos bonachões manejando
acordeons de suas casas instaladas em paisagens do século XVI enquanto
bebericam vinho, tentei puxar um coro de Raça Negra na varanda de casa.
Ninguém respondeu, exceto um gato
no telhado da casa ao lado, que miou de volta, como se compadecido ante o
esforço de criar uma sociabilidade no meio desse quadro de excepcionalidade a
que o vírus empurrou a todos, impondo a distância como regra de convívio e
fazendo do mundo um grande programa de fim de semana de adolescentes com dificuldade
de relacionamento.
Eu estava cansado, portanto,
irritado e cansado. Irritado, cansado e profundamente desconfiado diante de
tudo que estava acontecendo. Logo explico.
Era domingo. Depois de decorar
toda a etiqueta sanitária e certo de que agia pelo bem comum, fui ao
supermercado, admito que mais por curiosidade do que por necessidade, o que não
me orgulha.
Esperava um cenário de Walking Dead, com levas de pessoas
sobraçando pilhas de alimento e se acotovelando pelas últimas carreiras de
Cream Cracker de Fortaleza, mas encontrei casais desconfiados e donas de casa com
PETs pescando maquinalmente um queijo brie da seção de frios. Se havia um
apocalipse global, ele certamente não estava ali, entre as gôndolas de vinhos
na parte mais nobre do CEP da cidade.
Voltei pra casa mais tranquilo.
Tão logo liguei o aparelho de televisão, no entanto, a imagem de zumbis em
horda atacando humanos solapou qualquer hipótese de serenidade. Alguns portavam
cartazes, outros pediam fechamento do Congresso e do Supremo. Então percebi que
a epidemia era coisa séria, as pessoas de fato estavam mesmerizadas por um
torpor coletivo cujo agente transmissor era ninguém menos que o presidente da
República (música de suspense).
Eu já tinha visto esse filme. É
da década de 1970. Nele, um fungo se apodera do juízo dos terráqueos,
infiltrando-se na cúpula do governo e dominando seus corpos, que passam a
operar como fantoches. Ora, ora, tudo aquilo estava acontecendo naquele exato
momento, ao mesmo tempo, diante dos nossos olhos, sem que ninguém desse pela
gravidade.
O presidente agia como um
avatar manipulado por entidade biologicamente extraterrestre, cuidando em
contaminar a quem encontrasse pela frente, espalhando o elemento patógeno e
coletivizando a doença de que era portador.
Ele não era mais o chefe de uma
nação às voltas com uma doença infecciosa de origem duvidosa. Era um ET com a
língua presa e deficiência de leitura, e seu objetivo, dominar os outros
poderes, obrigando a todos a usar uma camisa falsificada do Brasil e chinela de
dedo, fazendo do mau gosto uma enfermidade ainda mais grave do que a dengue e a
chicungunha juntas.
Afogueado, fiz um resumo de
minha teoria e espalhei pelo Whatsapp, a fim de atingir o máximo de usuários,
mas obtive apenas resmungos e muxoxos. Ainda mais desconfiado, saí dos grupos
do condomínio, e agora espero o momento em que todos os vizinhos virão juntos bater
a minha porta no meio da madrugada.
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