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Guarda-chuva

Uma última coisa: não vá pensando que estou querendo esticar ainda mais a conversa, que volto porque passo dos limites, que a insistência é uma dádiva, que, não faz tanto tempo assim, eu fui embora e acabei não indo além da esquina etc.

Engula esse choro, eu diria se fosse uma mãe bem cruel e você uma criança a quem todos os amiguinhos tivessem deixado pra trás. É que preciso dizer, expressar, entende? Não basta formular, tenho que materializar a pergunta, recriá-la no tempo e no espaço, abri-la como um guarda-chuvas ainda que não esteja chovendo, me proteger dos golpes ainda que não caiam canivetes.

Eu faço perguntas para me abrigar da chuva. Não é preocupação com as roupas, é comigo.  

Vamos, não tenho tanto tempo. Passou do meu horário e a aula já começa, não quero perder. A prova oral é na semana que vem.

Esse sorriso... quer dizer o quê? Não, é uma pergunta de verdade, não embute nada, não é capciosa. Não esconde outra intenção, não quero saber de nada além do que já desejo. A única resposta que espero é a resposta que motivou a pergunta, não está claro?

Claro, nunca está suficientemente claro, nunca é suficientemente claro, há sempre uma corcova sobrando, uma sombra encobrindo tudo.  

Compreendo perfeitamente. Não peça desculpas, não sorria, não faça cara de choro, de cachorro perdido nem de mendigo.  

De palhaço, talvez.  

Era diferente naquele tempo. Aceito. Mas me deixa falar, por favor, que me atrasei só por causa disso. Foi pra isso que vim aqui, falar – não, por favor. Não vale. Essa camisa é aquela? Nossa, está bem velha. Tô esperando. 

Tudo bem, então é minha vez de falar. Preparar, apontar, fogo.

Essa foi a pior resposta que já ouvi.  

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