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Papéis antigos

Remexendo papéis, revirando o próprio lixo à procura das pistas certas, revolvendo as peças no guarda-roupa e identificando marcas nas paredes, nas pernas, braços. Traços invisíveis, trajetórias percorridas de muito tempo atrás. Um gesto flagrado. Um nexo. Nesga de qualquer coisa.

O risco de procurar e o de achar contido no mesmo precipício que é falar. O risco de perder e deixar passar.

Uma faca cega, uma caneta estourada na bolsa, um caderno, um bloco de anotações. Um inventário de coisas para as quais se olha e num instante não estão mais lá.

Marcas, grafismos, restos de corpo e fios presos. O metro exato da desistência, o marco inaugural do fracasso.

Um coletivo de impressões deixadas nesse caminho da boca ao ventre e de lá até o mais dentro. A passagem de um astro sem nome. Uma força cuja grandeza sem parâmetro assusta os cientistas.

Sem campo de estudo, sem objeto, sem método. Toda uma área a descoberto. Todo um sistema por existir. Toda uma pesquisa por fazer.

E, no entanto, revisitando documentos, revendo mapas e refazendo rotas, entendo que andei em círculos e me perdi. Agora procuro sinais luminosos como os da sala de cinema no escuro indicando a saída. Labirinto dentro do labirinto. Jogo de cartas que empurram outras cartas e mais outras, dando início a esse baralho em desmonte.  

A natureza aleatória do desencontro. O último lampejo do golpe. A anestesia que se segue à queda.

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