Pular para o conteúdo principal

Papéis antigos

Remexendo papéis, revirando o próprio lixo à procura das pistas certas, revolvendo as peças no guarda-roupa e identificando marcas nas paredes, nas pernas, braços. Traços invisíveis, trajetórias percorridas de muito tempo atrás. Um gesto flagrado. Um nexo. Nesga de qualquer coisa.

O risco de procurar e o de achar contido no mesmo precipício que é falar. O risco de perder e deixar passar.

Uma faca cega, uma caneta estourada na bolsa, um caderno, um bloco de anotações. Um inventário de coisas para as quais se olha e num instante não estão mais lá.

Marcas, grafismos, restos de corpo e fios presos. O metro exato da desistência, o marco inaugural do fracasso.

Um coletivo de impressões deixadas nesse caminho da boca ao ventre e de lá até o mais dentro. A passagem de um astro sem nome. Uma força cuja grandeza sem parâmetro assusta os cientistas.

Sem campo de estudo, sem objeto, sem método. Toda uma área a descoberto. Todo um sistema por existir. Toda uma pesquisa por fazer.

E, no entanto, revisitando documentos, revendo mapas e refazendo rotas, entendo que andei em círculos e me perdi. Agora procuro sinais luminosos como os da sala de cinema no escuro indicando a saída. Labirinto dentro do labirinto. Jogo de cartas que empurram outras cartas e mais outras, dando início a esse baralho em desmonte.  

A natureza aleatória do desencontro. O último lampejo do golpe. A anestesia que se segue à queda.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d