Outro sonho. O mesmo da semana
passada.
Acordo mais tarde do que o
habitual. Estico as pernas. Dores nas costas novamente, fisgadas persistentes
que repuxam o músculo, um aviso intermitente bipando na consciência: o tempo
passa.
Fragmentos, rostos, um cheiro. Penso
em dar uma volta de bicicleta, mas logo desisto. De repente o sol agride, os
carros parecem barulhentos, as ruas muito cheias, a perspectiva de encarar o
mar e diante do mar as palavras engasgarem.
Checo o celular. Abro portais
de notícias e vejo grupos de Whatsapp. Dezenas de mensagens aguardando resposta
como ganidos de cães no meio da madrugada.
Leio um artigo sobre o
inominável. Vocábulos estranhos que cada língua inventa para atender
necessidades próprias. Em japonês, por exemplo, é possível descrever a sensação
de enamoramento diante de alguém que se acaba de conhecer. Algo como uma
premonição.
Que palavras posso usar agora?
Quais têm serventia? Aperto control + F mentalmente. Não encontro nada.
E só então vejo que estar à
deriva é também perder contato com uma gramática pessoal. A sintaxe de
sentimentos desfeita, os conectivos atirados ao longe. Tudo frases sem
coordenação. Como numa ressaca.
Olho o espelho. O cabelo. O
rosto. O frágil reflexo de si mesmo às primeiras horas do dia. O
estranhamento que a própria presença causa. O fio interrompido. Soluços de
histórias. Este sou eu, digo a mim mesmo.
Hoje é o dia em que cortarei o
cabelo. Está grande, os volumes brotando nas laterais como chumaços de algodão.
No topo, a velha escassez que se anunciara quando ainda tinha 20 anos. Sim,
este sou eu. É difícil acreditar que tenha chegado até aqui.
Depois do almoço, sigo de carro
até o cabeleireiro e lá sento numa cadeira cujo espaldar me obriga a ficar à
mercê. Como num terapeuta. Relaxo. Fecho os olhos.
Tudo isso leva menos que uma
hora. Ali não tenho nada a dizer, apenas ouvir. Uma vizinha que faz as unhas e
pergunta se pode voltar amanhã. Tem um casamento a ir já programado desde
janeiro. Fez muitos planos.
Tento lembrar de pedaços do
sonho. Não consigo. Depois que acordo é como se apagasse o que vivi durante a
noite.
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