Pular para o conteúdo principal

Brasil a la Balenciaga

 

Fiquei pensando no tênis desgastado da Balenciaga vendido por dez mil reais. Roto, sujo, aparência de ter sido usado nos últimos três carnavais do Icaraí. Mas, a despeito disso, ainda caro, inalcançável ao bolso do vulgo pagador de impostos, principalmente se brasileiro.

A ruína comercializada, o passado plasmado em artefato consumido por grife de luxo e posto em circulação restrita. O velho não é apenas velho, é exclusivo. Como se se pagasse também pela memória que o objeto carregaria, ao menos em intenção.

O tênis da marca espanhola tem experiência sem ter tido de fato, entra no circuito com estatuto de peça de museu, um desses signos que remetem a civilizações antigas, encontrados em escavações num país qualquer de um continente distante.

É como uma mensagem distópica. À falta de futuro, fabricamos o pretérito. Daí o nome da estética: “destroyed”. De tudo, séries e filmes atuais disponíveis nos serviços de streaming, do fim do mundo ao apocalipse zumbi, é o produto de massa cuja mensagem é mais abertamente catastrófica. Não porque simule essa falsa sujeira e um desgaste ausente, postiço e calculado. Mas porque já estamos vendendo o que não temos: o tempo.

O tempo que nos falta, essa pressa sem projeto, uma aceitação de que não há porvir, acomodação ao futuro sem futuro. Tudo isso está desde agora precificado e etiquetado, sublimado até mesmo na moda, em peças que fazem questão de escancarar o princípio da destruição, estilizá-lo, empacotando o caos, elemento com o qual o Brasil vem convivendo de perto.

Da Amazônia ao garimpo, da cultura às instituições, o ideal “destroyed” está por toda parte, regendo as ações oficiais, os discursos, gestos e leis, as relações e escaramuças. Gasolina, diesel, óleo de cozinha, carne, inflação. Tudo destruído ou quase.

Há no Brasil de hoje e no tênis da Balenciaga um nexo não tão sutil, que é esse caráter de consumo para poucos de uma mercadoria convertida em detrito. Mesmo deteriorada, custa muito tê-la, assim como custa abastecer o carro e consumir o que quer que seja, ainda que com padrão baixo de qualidade.

Uma ideia restrita é compartilhada nesse campo de transações, o mercado global e a política. Afinal, é tudo negócio, seja um tênis (fake) velho ou um pedaço de terra no meio da floresta. Importa é aterrar qualquer possibilidade de um presente que não se esgote no hoje, que sobreviva mais do que 24 horas.

O produto da grife é melancolicamente jocoso. Um artigo pós-moderno por excelência, porque kitsch e sem pudor ao explicitar a condição danificada do estado geral das coisas, a corrosão dos objetos e das relações, mas sobretudo do planeta. E, ao mesmo tempo, não apontar pra lugar nenhum, não oferecer qualquer caminho que não seja o da mera destruição, mesmo que de brincadeira e a um preço pelo qual um punhado de gente consegue pagar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d