Pular para o conteúdo principal

Numa galáxia muito distante

 

Estive horas entretido com as imagens do James Webb, telescópio a quem já aprendemos a tratar na intimidade, como um amigo ou amiga que viaja para outro país e de lá nos manda postais dos lugares incríveis por onde passou.

Assim tem sido com o Webb, ou o JW, ou “Jaiminho”, como ouvi de uma especialista mais afeiçoada ao aparelho. Orbitando o Sol a 1,5 milhão de km, espiou as lonjuras do infinito-além e, tempos depois de revelada a foto, endereçou-nos pelo correio, com suas iniciais no verso.

Como uma janela para o já havido que nos devolve também, ao mirar no distante, a própria ideia do futuro, o que essa projeção do olhar revela?

Mais que pontinhos coloridos aureolados e cordilheiras cujos vértices estão repletos de pequenos berçários de estrelas, as fotografias do telescópio capturam passado e presente ao mesmo tempo.

Estão ali o já morto e o nascente. Começo e fim enredados, indistinguíveis, dobras do tempo-espaço, matéria comprimida ou em expansão a velocidades e temperaturas inimagináveis. Um filme que principia, mas imediatamente termina. Tudo contendo tudo.

Olho para isso com certa reverência. Primeiro por ignorância, depois porque tenho medo do que não tem borda, como essas piscinas infinitas ou a parte mais profunda do mar. E o que assusta nesses retratos do desconhecido é justamente a certeza de que há um lá fora inacessível, ou acessível unicamente a esse testemunho afastado de um fato extraordinário.

O telescópio como um narrador benjaminiano que volta da guerra para nos contar histórias assombrosas sobre um porvir fantasioso.

Tento, porém, me concentrar nas formas, associá-las a objetos do cotidiano, reduzir a escala de anos-luz para os metros e centímetros do dia a dia, os claro-escuros para o espectro cromático do ambiente doméstico.

Das galáxias como bijuterias faiscantes atiradas sobre uma mesa com toalha de veludo, até as formações gasosas e emaranhados de nebulosas que se parecem com teias de aranha ou rendas de um vestido, como essas imagens se relacionam com o aqui-agora?

Aglomerados azuis recém-nascidos e núcleos mortiços de sistemas em torno dos quais a luz se enfraquece, cumprindo um trajeto iniciado desde há muito, elas atraem a atenção porque são novidade e também porque fazem pensar, por contraste, no que já existe, no que está perto, no que é próximo.

Cientificamente, uma das maiores conquistas de Webb é permitir uma visada acurada das funduras do universo com um grau de precisão até então inédito.

Lado a lado, as imagens do novo artefato e as do Hubble, tadinho, soam como comparações entre o antes e o depois de fotos de família, de processos de emagrecimento ou de aperfeiçoamento de tecnologias.

O que se vê através de seu olhar, porém, é o nunca-visto que nos chega, vindo de muito longe, após ter empreendido uma viagem cujo ponto de partida já se perdeu e a chegada ainda não se conhece.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d