Pular para o conteúdo principal

Às margens de Ratanabá eu sentei e chorei

 

Ratanabá é uma cidade fantástica cujos portões só se abrem em ocasiões especiais e em condições específicas, como quando a gasolina aumenta ou um ativista é morto na Amazônia.

Ou quando descobrem gastos excessivos no cartão corporativo do presidente. Ou quando cai um novo chefe da Petrobras. Ou quando tudo isso acontece ao mesmo tempo, numa pororoca de notícias tão ruins para o governo que, num piscar de olhos, evocadas por palavras mágicas, correntes miraculosas começam a se replicar na internet com a força de um impávido exército de grávidas de Taubaté e de ETs Bilus.

Eis então que, nesse instante tão amargo para qualquer mandatário às vésperas de uma eleição, materializa-se Ratanabá, com sua tecnologia avançada mesmo para os padrões futurísticos de qualquer filme do Spielberg com dinossauros teleguiados.

É algo incrível mesmo, como uma Atlântida do trambique, uma Terra Média da patifaria, uma Oz da malandragem, uma Hawkins da malfeitoria. Lugar terraplanado onde o leite condensado e a rachadinha jorram do encanamento doméstico diretamente para dentro da lancheira das crianças, numeradas de 01 até 05.

Pra ser sincero, eu não conheço Ratanabá, mas um vizinho do primo do meu amigo de infância a quem não vejo desde a adolescência me mandou uma mensagem no grupo de WhatsApp assegurando que a construção existe de verdade.

Basta desligar a TV e parar de ler os jornais com essas informações negativas que Ratanabá começa magicamente a se substancializar na sua frente, mais ou menos como o espírito de Obi-Wan Kenobi se manifesta para Luke toda vida que ele se sente acuado.

Ratanabá não é uma promessa edênica, mas um estilo de vida. Que estilo? Um estilo descuidista, de prestigitador e animador de palco. Um estilo fake, que pede para que a gente olhe sempre pra cima e ignore o cometa se aproximando.

Aquela bola de fogo no céu a caminho da Terra com tamanho e massa suficientes para nos reduzir a pó? Não é nada, concentre-se em Ratanabá, um nome-fantasia que, por si só, é uma atração. Data de 450 milhões de anos antes de antes de qualquer coisa que existisse antes de tudo que já havia.

Ratanabá é como aqueles panfletos religiosos que entregavam na porta de casa, com seres humanos e animais confraternizando às margens de algum rio ou sob uma cachoeira, belas crianças loiras e seus familiares igualmente brancos e sorrisos fosforescentes plenos de vida povoando o imaginário transcendental.

Assim é Ratanabá, eu suponho, um continente onde uma juíza que viola os direitos de uma menina de 11 anos estuprada pode finalmente gozar da liberdade que merece, aplicando a lei conforme seus princípios morais e com base na cartilha torta que está em voga, zelando maldosamente pela integridade dos nossos filhos e filhas enquanto as obriga a parir o resultado de uma violência.

Em Ratanabá, uma menina é uma mulher, mas um marmanjo de 30 anos é um menino. E o estuprador, como bom pai, terá sempre a palavra final.

Nessa cidade perdida no coração da selva onde indígenas são mortos a rodo, a gasolina é três reais. A bandeja de ovos, cinco. O bife é muito barato, assim como a manteiga, o café e as hortaliças, o pão e o vinho, a bolacha e o biscoito.

Tudo em Ratanabá é maravilhoso. Vão por mim.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...

Cidade 2000

Outro dia, por razão que não vem ao caso, me vi na obrigação de ir até a Cidade 2000, um bairro estranho de Fortaleza, estranho e comum, como se por baixo de sua pele houvesse qualquer coisa de insuspeita sem ser, nas fachadas de seus negócios e bares uma cifra ilegível, um segredo bem guardado como esses que minha avó mantinha em seu baú dentro do quarto. Mas qual? Eu não sabia, e talvez continue sem saber mesmo depois de revirar suas ruas e explorar seus becos atrás de uma tecla para o meu computador, uma parte faltante sem a qual eu não poderia trabalhar nem dar conta das tarefas na quais me vi enredado neste final de ano. Depois conto essa história típica de Natal que me levou ao miolo de um bairro que, tal como a Praia do Futuro, enuncia desde o nome uma vocação que nunca se realiza plenamente. Esse bairro que é também um aceno a um horizonte aspiracional no qual se projeta uma noção de bem-estar e desenvolvimento por vir que é típica da capital cearense, como se estivessem oferec...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...