A gente se põe a escrever achando que chegará ao final do
mesmo jeito, conhecendo o caminho e parando o tempo que achar que pode. Mas
nunca é assim. O domínio se esfarinha.
Queria escrever hoje o que não tivesse fim. Como em 1996,
quando terminei um namoro e precisei andar de ônibus pela cidade. Ou em 2009,
quando o casamento acabou e dei voltas pela rua do bairro que eu já conhecia
tão bem. Aprendi a fumar andando em círculos. Ajudou, mas não funcionou. Isso
foi em abril. De lá pra cá, choveu tanto que nem sei mais se é o tempo lá fora
ou aqui dentro que deu uma piorada. Sei que escurece.
Uma carta de despedida é também uma carta de chegada. É uma dessas
ironias que a gente cria a pretexto de entabular conversa com gente estranha. É
como um papo no elevador. Escrever para dizer que vai embora. Ou escrever pra
falar que fica ainda. Ficar ou ir. Tudo em arte é uma separação, do corpo, da família,
da vida.
Li que García Márquez passou um ano e seis meses fora de
casa para conseguir escrever Cem anos de
solidão. Deixou pra trás filhos e esposa, que tiveram de se virar com menos
de dois mil dólares enquanto ele estava longe. Empenharam móveis, arranjaram
dinheiro com amigos e negociaram com vizinhos o aluguel. Tudo para que o Gabo criasse
a epopeia mágica da família Buendía, que agora completa meio século de
publicação. Valeu a pena?
Andaram dizendo que Belchior foi péssimo pai. Eu acredito. Estive no velório do cantor e
passei quase todo o tempo observando o filho dele, que se mantinha distante do
caixão, num canto da sala. Me surpreendi com a semelhança entre os dois: a mesma testa, o nariz
aquilino, o rosto anguloso, os cabelos
bastos nas laterais e uma calvície pronunciada. Pensei no meu próprio pai. Somos
tão parecidos em tudo. Quis eu mesmo chorar o choro que o filho, em meio a
tanta gente, não podia. Ou não queria.
Até que, perto do final, o rapaz, que tem a minha idade e deve
ser como qualquer latino-americano, se aproximou e tocou o rosto do morto que
era seu pai. A sala já quase vazia, poucos fotógrafos registraram a cena. Foi
um desses momentos bonitos. Em casa,
depois de um dia de trabalho, eu fui ao banheiro e chorei.
Tenho pudores de chorar, mas não de escrever. Domingo, por
exemplo, pedi licença algumas vezes para ir até o cômodo mais silencioso de
casa. Pensava na morte, nas dores que a gente carrega, nas dores que provoca,
no amor, sobretudo no amor. Eu sou moço ainda pra chorar e amar tanto, pensei.
Não era. Ficasse à vontade, ouvi Belchior cantando ao ouvido. O poeta tinha morrido, não sua poesia. Mas
dói a separação. Do corpo, da casa, do afeto. É como um parto às avessas.
Chorava também por medo de ser péssimo pai. Choro ainda.
Medo de acenar e o ônibus não parar. Medo de perder o amor que chega sem avisar
e vai embora de repente porque a gente é esse corpo ferido, e um corpo ferido
carece de explicação: não faz nada por si. Ele é como um rio, um bicho, um
bando de pardais. Um corpo ferido tem medo, mas vai em frente.
* Crônica publicada no jornal O POVO dois dias depois da morte de Belchior.
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