Pular para o conteúdo principal

Fio que se liga ao mar

Eu tinha escrito uma dessas coisas tristes que a gente escreve quando o mundo gira em falso e deixamos cair objetos que escolhemos carregar, pratos, louças, garfos, livros e caixas contendo fotografias, que se espalham pela rua e depois precisamos juntar com a ajuda de estranhos. 

E montar em seguida o quebra-cabeças que somos nós mesmos, estendendo um fio de Ariadne para sair do labirinto e driblar o minotauro, chegando ao final sem entender direito como foi parar ali.  

Mas aí reli e pensei: quero escrever uma coisa alegre. Dei meia-volta e refiz todo o caminho no mesmo passo, uma trilha de retorno desenhada por alguém diferente do que foi, não apenas nesse sentido de Heráclito, de que uma mesma pessoa não toma banho duas vezes no mesmo rio – porque o rio já é outro e ela também.

A pessoa que regressa, como num dos livros do Alejandro Zambra, é sempre uma terceira, tenha passado o tempo que for, seja porque ela é uma, seja porque a casa é outra. São como uma caixa de fotografias quando cai e se mistura aos passos de quem vai e de quem volta.

Escrever é uma costura tanto quanto tecer esse fio imaginário que atravessa as ruas, chega à esquina, faz uma curva e alcança o mar – escrever é ligar-se ao que não tem fim por meio de um recurso frágil e escasso, que é a palavra. Curar-se pela palavra é combater canhões com arco e flecha. Às vezes funciona; noutras, não.

Li em algum lugar que a noção de costura tem se repetido na arte contemporânea, como a sugerir que precisamos atar pontas soltas para resolver impasses coletivos e pessoais. Nunca senti tanta necessidade de ver juntar-se ao outro um diferente, de assistir a um fio perder-se entrando na água, criando entre nós e o que arrebenta um vínculo, ainda que precário. 

Nunca precisei tanto de curar-me costurando em mim o que está fora, como a garantir que, pela falta do que sou, esse complemento faça com que a lacuna deixe de ser lacuna e o vazio, vazio.

A hora da estrela, o último livro de Clarice Lispector em vida, está prestes a completar 40 anos. Logo de cara, a obra pergunta: como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? É desse modo que o narrador também fala de um fio que jamais se interrompe, um fio que é um caminho que é uma costura que é um mar que é um amor que é uma letra, a partir da qual tudo começa.

Nesta semana enviei uma carta pelos Correios com a esperança de que chegasse a um endereço que eu não sei qual é, uma casa de muro baixo e plantas crescendo na fachada, um local com ares de abandono. Fica na rua Padre Valdevino e está para alugar. Se eu fosse outro, alugaria essa casa e moraria nela por anos a perder. No futuro, puxaria pelo fio da memória e tentaria lembrar por que tinha ido parar ali. Eu não saberia.  

Quis escrever como se costurasse pedaços de fotografias e memórias, numa colagem de tempos, um mosaico percorrido por um fio ordinário que atravessa tudo, enovelando-se aqui e ali, dando-se a engodos que jamais poderei desatar sozinho. Quis costurar para escrever que esse fio, mesmo esticado, não se esgarça, talvez porque é um fio trançado por muitas mãos saindo de casa, andando pelas ruas, cruzando esquinas e chegando ao mar, diante do qual param e pensam se vale a pena seguir adiante.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Restos de sombra

Coleciono inícios, restos de frases, pedaços e quinas das coisas que podem eventualmente servir, como um construtor cuja obra é sempre uma potência não realizada. Fios e tralhas, objetos guardados em latas de biscoito amanteigado, recipientes que um dia acondicionaram substâncias jamais sabidas. Se acontece de ter uma ideia, por exemplo, anoto mentalmente, sem compromisso. Digo a mim mesmo que não esquecerei, mas sempre esqueço depois de umas poucas horas andando pela casa, um segundo antes de tropeçar na pedra do sono ou de cair no precipício dos dias úteis. Às vezes penso: dá uma boa história, sem saber ao certo de onde partiria, aonde chegaria, se seria realmente uma história com começo, meio e final, se valeria a pena investir tempo, se ao cabo de tantos dias dedicado a escrevê-la ela me traria mais felicidade ou mais tristeza, se estaria satisfeito em tê-la concluído ou largando-a pela metade. Enfim, essas dúvidas naturais num processo qualquer de escrita de narrativas que não são

Essa coisa antiga

Crônica publicada no jornal O Povo em 25/4/2013  Embora não conheça estudos que confirmem, a multiusabilidade vem transformando os espaços e objetos e, com eles, as pessoas. Hoje bem mais que antes, lojas não são apenas lojas, mas lugares de experimentação – sai-se dos templos com a vaga certeza de que se adquiriu alguma verdade inacessível por meios ordinários. Nelas, o ato de comprar, que permanece sendo a viga-mestra de qualquer negócio, reveste-se de uma maquilagem que se destina não a falsear a transação pecuniária, mas a transcendê-la.  Antes de cumprir o seu destino (abrir uma lata de doces, serrar a madeira, desentortar um aro de bicicleta), os objetos exibem essa mesma áurea fabular de que são dotados apenas os seres fantásticos e as histórias contadas pela mãe na hora de dormir. Embalados, carregam promessas de multiplicidade, volúpia e consolo. Virginais em sua potência, soam plenos e resolutos, mas são apenas o que são: um abridor de latas, um serrote, uma chave-estrela. 

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d